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Ricardo Feltrin

Análise: Entenda por que Bolsonaro odeia tanto a Globo

Colunista do UOL

20/07/2020 00h09

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Não há praticamente um dia em que o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos ou seguidores fiéis não ataquem a TV Globo com ódio incomum e gigantesco.

A hashtag "globolixo" virou uma das mais postadas nas redes sociais por bolsonaristas.

Mas, vocês leitores, já pararam para pensar sobre o porquê de tanto ódio do presidente ao maior veículo de comunicação do país —líder de audiência na TV aberta, na TV paga e no streaming?

Pois a coluna hoje pretende buscar (ao menos em parte) essa resposta e explicar o que está por trás da revolta de Bolsonaro e seus discípulos (e mentores, como Olavo de Carvalho) contra a Rede Globo. Vamos lá...

O 1º motivo do ódio se chama "mágoa"

Bolsonaro tem enorme rancor e mágoa com a TV Globo e todos os veículos do grupo porque passou décadas na Câmara dos Deputados sendo ignorado (também nada fez de notável, é bom dizer).

Mesmo assim, ele nunca foi ouvido em repercussões de grandes fatos nacionais ou internacionais, e nem mesmo da Câmara; seus discursos não tinham a menor importância e sua existência era literalmente desprezada.

Para a Globo, no passado, o deputado Bolsonaro era menos que um integrante do "baixo clero". Era simplesmente nada.

Na TV comercial, o atual presidente só encontrou eco na mídia em programas de humor, como o "CQC", ou o "Superpop", de Luciana Gimenez, na RedeTV.

Bolsonaro parece ter memória "seletiva", porém.

Ele não parece se lembrar que o agora queridinho SBT também nunca deu a menor bola para sua carreira e obras como deputado federal. E tampouco a Record. A mágoa toda, porém, ficou só para a Globo.

O 2º motivo do ódio se chama "jornalismo"

Além de não ter sido jamais notícia nos veículos do Grupo Globo —exceto de forma negativa—, o atual presidente da República tem enorme desprezo pelo chamado jornalismo profissional E principalmente o crítico.

Autoritário e vaidoso, está muito claro que ele só aceita ser bajulado ou no mínimo tratado com reverência por veículos de comunicação.

O estilo crítico, inquisidor e investigativo da Globo —e de jornais como a "Folha"— incomoda e revolta profundamente o presidente, que sempre pregou (assim como Lula!!!) ser a alma mais honesta do Brasil.

Com os filhos do presidente, a mesma coisa.

Antes da eleição do pai eram cheios de "marra". Um dizia que não precisava de foro privilegiado; o outro desafiava alguém a achar um só ato de corrupção em sua carreira.

Como todos sabem, não só os três filhos como vários outros membros e ex-membros da família Bolsonaro estão enrolados agora com investigações que vão da corrupção pura ("rachadinha") e suspeita de lavagem —sem falar na ameaça às instituições democráticas ("gabinete do ódio").

O fato de a Globo ser um dos carros-chefe na publicação desse tipo de noticiário —e de ter sido inclusive a origem de algumas das investigações— não desce a goela do presidente da República.

O 3º motivo do ódio se chama "sentimento de injustiça"

Casos sobre ele publicados pela Globo e jamais confirmados o revoltam de forma descontrolada até.

A divulgação, pelo "Jornal Nacional", de que um porteiro do condomínio onde o presidente vive no Rio teria dito à polícia que um dos assassinos da vereadora Marielle Franco foi horas antes do crime à casa do presidente é outro motivo de rancor e desejo de vingança.

Jair Messias Bolsonaro, 65, também acredita que a TV carioca persegue seus filhos (assim como qualquer veículo isento) e acha que tudo se trata de uma questão pessoal.

Já se queixou publicamente que a TV cobre investigações sobre a "rachadinha" (apropriação de parte dos salários de funcionários de gabinete) e só fala de seu filho Flávio e do ex-assessor dele, o militar aposentado Fabrício Queiroz.

Enquanto isso ignora os outros deputados investigados no mesmo caso —não deixa de ter certa razão nesse ponto.

O 4º motivo se chama "dinheiro"

Sim, o quarto motivo que leva Bolsonaro a odiar a Globo é "dinheiro". Não o que entra no bolso dele, mas o que sai do bolso de seu governo.

Desde a posse em janeiro de 2019, o presidente e seus apoiadores tentam de todas as formas sufocar a Globo financeiramente.

Um levantamento informal feito por esta coluna aponta que só a TV Globo recebia em publicidade direta do governo federal (sem contar estatais e outros órgãos) entre R$ 400 milhões e R$ 500 milhões anuais nos governos finais de Lula, Dilma e Temer.

Isso representaria de 4% a 5% dos R$ 10 bilhões de faturamento só da TV (não de todo o grupo Globo, que está na casa dos R$ 13 bilhões).

Pois com Bolsonaro esse valor estaria hoje no máximo em 10% disso: R$ 40 milhões —isso se muito.

Essa quantia não deve ficar muito longe do que o governo deve gastar em publicidade este ano na Record e no SBT.

Com a diferença que o ibope dessas duas emissoras somadas é de apenas 75% do ibope da Globo sozinha.

Desde o ano passado a Secretaria de Comunicação (Secom) tem fechado as torneiras para a Globo e todo seu grupo.

A emissora tem respondido ao momento atual com corte de custos, mas ainda com investimentos pesados em outras plataformas.

Custos e vítimas da guerra

Dito tudo isso acima, a decisão de Bolsonaro de declarar guerra à Globo tem um custo enorme para seu governo também.

Primeiro que, ao tirar as campanhas de lá, está tirando a visibilidade delas em todo o Brasil.

Lembrem-se: os bolsonaristas não são a maioria da população, nem a do eleitorado e muito menos a de telespectadores brasileiros. Fosse assim a hashtag #globolixo já teria surtido algum efeito e afundado a audiência da TV.

Se a Globo está "sangrando" com o boicote?

Provavelmente sim, mas até o momento não parece nenhuma hemorragia que vá levá-la à morte ou nem sequer à UTI.

A emissora tem uma gestão altamente profissional, muito bem preparada e já estava cortando seus custos e gastos havia anos.

Efeito colateral do boicote é que ele tem atingido inocentes: profissionais talentosos, sérios e que em alguns casos até apoiam o presidente. Sem falar nos jornalistas (leia mais abaixo).

Além disso o Grupo Globo tem investido pesado em outras mídias, como o streaming e segue presente e investindo na TV paga.

Em resumo: com ou sem dinheiro do governo, a Globo continua e continuará por muito tempo sendo não só o maior faturamento midiático do Brasil, mas também a maior audiência na TV aberta, da TV paga e agora também do streaming (diz a lenda que o Globoplay já tem mais de 5 milhões de assinantes).

Sabendo disso o presidente atinge a emissora da família Marinho de outras formas, que podem ser consideradas mais mesquinhas e até desumanas.

1 - Os jornalistas e profissionais da Globo são sistematicamente atacados, ofendidos e até ameaçados em entrevistas coletivas; viraram alvo físico de radicais bolsonaristas nas ruas também;

2 - Bolsonaro e seus ministros ou funcionários boicotam repórteres globais passando eventuais furos jornalísticos para suas concorrentes; a Globo foi a última a saber e publicar que ele estava com covid-19, por exemplo;

3 - Além de prejudicar a Globo, o governo beneficia de forma diametralmente oposta outros veículos como a CNN Brasil —cujo ibope é um "cisco" do da Globo e não chega nem perto do da GloboNews na TV paga;

4 - Bolsonaro e seu ministro das Comunicações, Fábio Faria, agiram até com uma MP feita sob medida (com trocadilho) para prejudicar a emissora no futebol e, especialmente, no caso da final do campeonato carioca.

A ação acabou beneficiando o "aliado" SBT;

5 - Nos bastidores, o presidente e seus aliados atuam desde o ano passado para tentar tirar a Fórmula 1 da Globo também;

Bolsonaro x Globo

A persistência na guerra pode até prejudicar a Globo, mas certamente tem potencial de prejudicar Bolsonaro da mesma forma, se não mais.

Se a Globo "persegue" Bolsonaro? Não acredito que seja perseguição, mas a natureza inata do jornalismo crítico (gostem ou não) que a emissora praticou nos últimos governos —FHC, Lula, Dilma, Temer— mostra que nenhum presidente escapou de seu viés declaradamente incisivo e questionador.

Se a Globo erra e já errou com Bolsonaro? Não tenho a menor dúvida.

Se já foi intencionalmente injusta? Talvez, mas isso não tenho como provar. Mas, imagino que, se ocorreu, foi só depois de sofrer a declaração de guerra do próprio presidente.

Porém não posso deixar de observar que a Globo e mesmo a GloboNews "anulam" não só Bolsonaro, mas praticamente qualquer outro político ou personagem que o apoiam.

Bolsonaristas não têm espaço ou vez nos programas globais, e isso não deixa de ser algo ruim para o jornalismo e para o equilíbrio da mídia em geral.

Não estou falando de dar "palco para maluco", como a CNN Brasil tem feito de forma escancarada com alguns "terraplanistas", mas de dar ao menos algum espaço ao contraditório.

Sei que não é fácil achar alguém articulado e sensato dentro do bolsonarismo, mas esse é também um desafio para a emissora.

Do outro lado da moeda, não era possível deixar de notar que, antes da pandemia a Globo (como pessoa jurídica) não escondia que tinha ENORME simpatia pelas propostas do ministro da Economia do atual governo, Paulo Guedes.

Na verdade ele sempre foi o único bolsonarista com algum prestígio, mas o coronavírus acabou com isso.

Mas, ainda há uma questão final: depois que deixar o Palácio do Planalto (eventualmente se não for reeleito em 2022) Jair e seu governo podem ser investigados por uma série de irregularidades cometidas no exercício do cargo atual em relação à mídia.

Não só pelo boicote à Globo, mas pelo benefício a veículos irrelevantes que ganham verbas e publicidade só por apoiar seu governo.

Que ninguém acredite em impunidade pós-mandato. A história mostra que isso não existe nem no Brasil nem no resto do mundo.

Entre outras possibilidades, Bolsonaro pode ser acusado de perseguir, discriminar e prejudicar uma empresa de mídia e seus profissionais em benefício de outras em busca de apoio governamental.

Vivemos —infelizmente para os "ideológicos" bolsonaristas— uma democracia, e não uma ditadura.

Governar democraticamente demanda respeito às leis, às regulamentações e há toda uma liturgia a ser cumprida e respeitada.

O que Bolsonaro e seu primeiro escalão (inclusive as dezenas de militares) parecem esquecer é que todos fazem parte de um governo transitório.

Todos representam, mas não SÃO o Estado, e terão de arcar com as consequências e prestar contas agora e futuramente não só aos tribunais, mas também à história.

A Globo? Ora, a Globo vai cobrir isso.

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