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OPINIÃO

Oscar: Por que 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' incomoda tanta gente?

Michelle Yeoh em "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" - Divulgação
Michelle Yeoh em 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' Imagem: Divulgação

Jéssica Nakamura

De Splash, em São Paulo

15/03/2023 04h00

"Para todos os meninos e meninas que se parecem comigo, este é um bastião de esperança e possibilidades", disse Michelle Yeoh ao se tornar a primeira asiática a ganhar o Oscar de melhor atriz. "Sonhos são algo em que você precisa acreditar. Eu quase desisti do meu", emocionou-se Ke Huy Quan ao receber o prêmio de melhor ator coadjuvante quase 40 anos após sua estreia no cinema.

Eu já fui uma menina que se parece com a Michelle Yeoh. E, assim como Ke Huy Quan, integrei o elenco de uma produção audiovisual infanto-juvenil décadas atrás. Mas, diferentemente deles, eu desisti. Pelo mesmo motivo que fez Yeoh Choo Kheng se tornar Michelle Yeoh, Ke Huy Quan sumir das telas após estrelar clássicos como "Os Goonies", e boa parte do público e da crítica abominar "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo".

Por essas e por outras, o "hate" recebido pelo ganhador do Oscar também deve ser visto como algo que pode extrapolar o simplesmente gostar ou não de um filme. Microagressões diárias que senti por conta da minha aparência somadas à experiência em pesquisa acadêmica sobre cinema me levam a considerar que se trate de um sintoma inconsciente da rejeição do Ocidente a tudo que é considerado "estrangeiro" —mesmo que não seja.

Embora a vitória de "Parasita" como melhor filme em 2020 tenha sido amplamente celebrada, a reação à premiação deste ano mostra que, para além da categoria de melhor filme internacional, o cinema historicamente retrata os asiáticos pelo estereótipo eurocêntrico. Essa tendência ajuda a entender o incômodo dos haters ao se depararem com "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", que se afasta dessa leitura e mostra uma nova perspectiva realista desses imigrantes.

Jonathan Wang recebe o Oscar de melhor filme por 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo' - Kevin Winter/Getty Images - Kevin Winter/Getty Images
Jonathan Wang recebe o Oscar de melhor filme por 'Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo'
Imagem: Kevin Winter/Getty Images

Esse análise cultural ficou em segundo plano e o debate recaiu em pontos mais palatáveis após anos de filmes de super-heróis: o tema do multiverso, que rendeu comparações do filme com "Matrix" e a Marvel, e a montagem frenética associada à linguagem do TikTok tão presente entre os jovens.

O roteiro do filme dividiu opiniões entre os críticos de cinema. Para muitos, o estilo rápido e intenso dos acontecimentos é uma inovação digna de nota, o que levou o longa a vencer o Oscar de melhor roteiro original. Só que para outra parte da crítica o roteiro é confuso e os dilemas familiares de Evelyn (Michelle Yeoh) não teriam a complexidade que se espera de um vencedor do Oscar. Em parte das críticas de jornais nacionais e internacionais, essa trama é resumida a algo menor, questões simples de relacionamento entre pais e filhos. Porém há um contexto que pode ser importante de ser considerado.

Diferentemente do sul-coreano "Parasita", "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" não é um filme asiático feito por asiáticos com atores asiáticos falando um idioma asiático. É um filme americano feito por americanos descendentes de imigrantes asiáticos (Daniel Kwan) e europeus (Daniel Scheinert) com atores de ascendências diversas falando idiomas ocidentais e asiáticos. Isso é importante para entender os dilemas da protagonista, porque as relações de Evelyn com pai e filha estão dentro de um contexto único, o das famílias asiáticas que emigraram para o Ocidente e passaram por um choque cultural, que transformou as relações familiares.

Só quem é sabe que não há nada mais asiático-americano do que se apropriar dos estereótipos do imaginário ocidental (como os filmes de kung fu que, até pouco tempo atrás, eram os únicos que garantiam empregabilidade a atores amarelos) e misturá-los com clichês hollywoodianos (e ideias que só poderiam ter saído da cabeça dos Daniels) de forma frenética o bastante para "disfarçar" um dos pontos principais do filme. Incorporar parte da cultura, e da forma de fazer cinema, também pode ser um jeito de conseguir a atenção do público e contar a história que se deseja compartilhar.

Por baixo da superfície das cenas de lutas e da comédia nonsense, os Daniels expressam algo muito mais singelo: a dificuldade que diferentes gerações de famílias imigrantes asiáticas têm de se comunicar e, sobretudo, demonstrar afeto —do patriarca tradicionalista à sua neta lésbica ocidentalizada que sequer sabe falar o idioma de seus antepassados.

Se a premiação histórica é um sinal de que Hollywood está tão perdida que embarca em qualquer canoa, que esta seja como o barco que deu início à jornada do vietnamita Ke Huy Quan do campo de refugiados à realização de seu sonho americano no palco mais importante de Hollywood.

E que, diferentemente de mim, outros meninos e meninas que se parecem com Michelle Yeoh sintam-se mais confiantes para correr atrás de seus sonhos.

Afinal, como diz o Waymond Alfa ao explicar a Evelyn o algoritmo que torna toda aquela loucura possível, "as menores decisões podem gerar diferenças significativas ao longo da vida". A escolha da Academia de consagrar "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" como um dos filmes mais premiados da história do Oscar é uma delas.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado anteriormente, "Tudo em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo" não é o filme mais premiado da história do Oscar. As sete estatuetas que venceu colocam o longa no grupo dos mais premiados ao longo dos 95 anos do Oscar, mas o título de mais premiado pertence aos filmes "Titanic", "Ben-Hur" e "Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei", os três com onze prêmios cada.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL