Roberto Sadovski

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Opinião

Épico e assustador, 'Duna: Parte 2' é alegoria sobre o poder do fanatismo

A ficção científica é o melhor gênero do cinema para retratar a condição humana. Ao remover da equação a moldura do mundo real, qualquer história, qualquer tema, pode ser abordado como alegoria social, política ou religiosa. Não existem tabus ou amarras. É um espelho misterioso e infinito refletindo quem nós somos.

"Duna: Parte 2", que complementa a adaptação da obra de Frank Herbert pelo diretor Denis Villeneuve, é a materialização dessa teoria. No coração de um épico espacial com batalhas grandiosas, mundos fantásticos e a eterna luta do bem contra o mal, repousa uma trama sobre o perigo e as consequências do fanatismo - seja ele político, seja religioso.

Na história de Paul Atreides e de sua ascensão como figura mítica, líder espiritual e militar, "bem" e "mal" são conceitos relativos aos olhos de quem vê. Ele embarca numa escalada que começa como salvaguarda para sua vida como foragido do massacre de sua linhagem, depois se arvora na crença de sua própria divindade - passo perigoso para incendiar uma massa de devotos que, uma vez colocada em curso, não pode mais ser freada.

São temas polêmicos e perigosamente delicados que Villeneuve não hesita em abordar - pelo contrário, ele os sublinha. Em vez de condensar as ideias de "Duna" em uma aventura inconsequente e de fácil assimilação, o diretor canadense assume que uma ficção científica com algo a dizer sempre resulta no melhor do gênero. No caso deste "Parte 2", ele criou um filme assustador e desconfortável - ou seja, todos os predicados corretos.

Quando assumiu a responsabilidade em traduzir para o cinema uma das obras mais celebradas da literatura, Denis Villeneuve entrou numa batalha contra expectativas. Menos por uma eventual comparação com a adaptação lançada por David Lynch em 1984, obra mutilada por seus produtores e limitada pela tecnologia da época, e mais por assumir uma postura de reverência com o trabalho de Frank Herbert.

O caminho escolhido foi o mais arriscado: filmar metade do livro sem a garantia de rodar uma segunda parte, quadro agravado por um lançamento em 2021 ainda sob a sombra da pandemia. De forma meticulosa, "Duna" armou o tabuleiro para a saga de Paul Atreides com uma construção de mundo de tirar o fôlego, sustentando as maquinações políticas que o levaram ao conflito no mundo árido de Arrakis. Foi um sucesso artístico e comercial que garantiu uma segunda parte ainda mais ambiciosa.

Materializar o mundo imaginado por Frank Herbert ainda é parte do DNA de "Duna". O novo filme, contudo, desacelera esse fascínio visual para se concentrar nas consequências da guerra pelo domínio de Arrakis e na ascensão de um líder messiânico em um conflito volátil. É o caminho escolhido por Paul Atreides, que se envolve profundamente na cultura Fremen e pavimenta a consolidação de sua liderança ao assumir o manto de Predestinado.

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Javier Bardem se posiciona para a guerra em 'Duna: Parte Dois'
Javier Bardem se posiciona para a guerra em 'Duna: Parte Dois' Imagem: Warner

"Duna: Parte 2" começa exatamente onde o primeiro terminou, com Paul (Timothée Chalamet) e sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), aceitos de forma relutante entre os Fremen, povo nativo que luta contra o poder opressor da dinastia Harkonnen. Com a morte de Leto Atreides (Oscar Isaac), pai de Paul, os invasores grotescos retomam com fúria seu trabalho para extrair das areias desérticas de Arrakis a especiaria, elemento mais valioso da galáxia.

Seguindo o caminho oposto da cartilha do blockbuster contemporâneo, Villeneuve dita aqui um ritmo nada frenético, essencial para posicionar novos jogadores no tabuleiro. Duas adições fundamentais são o imperador Shaddam IV (Christopher Walken), regente de toda a galáxia, e sua filha, a princesa Irulan (Florence Pugh), que não vê com bons olhos a articulação de seu pai na devastação da dinastia Atreides mostrada no filme anterior.

O novato mais interessante, contudo, é o letal Feyd-Rautha (Austin Butler). Sobrinho do chefe da Casa Harkonnen (Stellan Skarsgard), ele é convocado pelo tio para endurecer sua liderança em Arrakis, o que inclui a devastação completa dos Fremen. É um personagem fascinante por sua absoluta falta de apreço pela vida. Butler despe-se de sua irritante postura como Elvis Presley (que o acompanhou muito depois do filme sair de cartaz) e finalmente se mostra um ator versátil.

Austin Butler liberta sua fera interior em 'Duna: Parte Dois'
Austin Butler liberta sua fera interior em 'Duna: Parte Dois' Imagem: Warner

Todos os elementos familiares à jornada do herói são gritantes em "Duna: Parte 2" - enfatizados pelos paralelos religiosos descritos por Herbert, reproduzidos aqui de maneira exemplar. Existe em Paul Atreides o reflexo óbvio com os dogmas cristãos - morte e ressurreição, uma jornada de autoconhecimento no deserto, sua mãe santificada como figura divina -, somado a uma influência da cultura do Oriente Médio em tudo que o cerca.

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O fervor religioso é acentuado com a devoção quase cega do líder de uma das tribos Fremen, Stilgar (Javier Barden), à crença de que Paul Atreides, rebatizado Muad'Dib, é o messias destinado a restaurar a liberdade de Arrakis. O equilíbrio do jovem vem de seu relacionamento com Chani (Zendaya), guerreira que enxerga o conflito com pragmatismo e pressente o perigo de uma escalada regada pelo fanatismo.

Paul Atreides, por sua vez, revela-se um protagonista complexo, que perigosamente se despe de seu próprio ceticismo para acreditar que seu papel como Predestinado é a faísca capaz de encerrar o conflito. Atormentado por visões genocidas, ele se pergunta se o preço de bilhões de vidas e da deflagração de uma Guerra Santa compensam seu combo de liberdade e vingança. Como diria Harvey Dent em "O Cavaleiro das Trevas", "ou você morre um herói, ou vive o bastante para se tornar um vilão".

'Duna: Parte Dois' é um espetáculo visual em grande escala
'Duna: Parte Dois' é um espetáculo visual em grande escala Imagem: Warner

Embora o livro de Frank Herbert seja reflexo de sua época, suas ideias continuam relevantes. É fascinante observar como a trama de "Duna: Parte 2" reflete conflitos bem reais, em especial na Europa e no Oriente Médio, que hoje dividem o planeta e parecem ter perdido o controle. O autor era, acima de tudo, um observador e um visionário - não é ao acaso que seu trabalho se mantém influente e expressivo.

A sugestão de uma Guerra Santa, enfatizada em símbolos e signos espalhados ao longo do filme, é um traço do livro que Villeneuve fez questão de não atenuar. Sua liberdade para tomar decisões criativas e estéticas ousadas, especialmente em um produto que custou centenas de milhões de dólares, é incomum e estimulante. "Duna" ressalta a capacidade de enxergar o mundo por trás de suas máscaras, em um futurismo que rima com repetição de padrões sociais, políticos e religiosos. O filme não foge de nenhuma controvérsia.

Sua semente sempre esteve nas palavras de Frank Herbert. "Os Fremen são treinados para acreditar, não para ter conhecimento", escreveu em "Messias de Duna", segundo livro da saga lançado em 1969. "Crença pode ser manipulada, o conhecimento é perigoso." Igualmente perigosa é a noção de que o povo escolhido é o povo que não pode ser derrotado porque acreditam na causa. Ter essa noção apresentada num produto do cinemão hollywoodiano em pleno 2024 é revigorante.

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Com conceitos assim, "Duna: Parte 2" se posiciona em um patamar diferente do oceano de blockbusters que preferem nublar a estimular as ideias. Tudo isso num pacote grandioso como o primeiro filme, um espetáculo de escopo épico que consegue também ser uma história sobre pessoas imperfeitas, sobre amor e vingança, sobre ações e consequências. Sobre guerra. Sobre morte. É brilhante. E é absolutamente assustador.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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