Roberto Sadovski

Roberto Sadovski

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

O belíssimo 'O Menino e a Garça' prova que até os gênios erram a mão

"O Menino e a Garça" é um filme belíssimo. Alegoria sobre a dor do luto e a dificuldade em abrir mão do passado para construir um futuro, é uma obra delicada, que troca caminhos narrativos óbvios por um simbolismo alimentado pela mais pura imaginação. Se tivesse a assinatura de qualquer cineasta, seria uma pérola moderna.

Hayao Miyazaki, porém, não é qualquer cineasta. Um dos grandes gênios do cinema, o diretor construiu uma coleção de obras-primas que apagou a linha entre realidade e fantasia, abordando temas caros à condição humana sob um prisma lúdico. De "Meu Amigo Totoro" a "Vidas ao Vento", passando por "Princesa Mononoke" e "O Castelo Animado", seus filmes parecem conversar direto com a alma.

Este diálogo, contudo, sofre aqui uma certa interferência. Embora seja visualmente superlativo, o novo trabalho de Miyazaki caminha na sombra de sua obra, recuperando temas e sentimentos por ele abordados em filmes que fazem "O Menino e a Garça" parecer um caminho já trilhado. É injusto usar toda uma filmografia como comparação. Miyazaki, porém, me deixou mal acostumado.

De inspiração autobiográfica, espelhada em elementos da infância do diretor, "O Menino e a Garça" acompanha Mahito, um garoto que sofreu a dor irreparável de perder sua mãe ao final da Segunda Guerra Mundial. Seu pai, dono de uma fábrica de munições, casa-se então com Natsuko, a irmã de sua esposa, e essa nova configuração familiar deixa a cidade para se recolher em uma propriedade no interior.

É nesse lugar que Mahito, inconformado com a perda e com uma tia - agora sua madrasta - que ele mantém à distância, é seduzido por uma garça falante que lhe confidencia uma maneira de reencontrar sua mãe. O sumiço de Natsuko na floresta é o começo de uma jornada no tempo e entre dimensões que conduz Mahito a um mundo mágico, uma terra compartilhada pelos vivos e pelos mortos que o força a amadurecer para encarar os fatos mais dolorosos da vida.

O eco que ressoa mais alto aqui é "A Viagem de Chihiro", obra-prima absoluta que Miyazaki dirigiu em 2001. A jornada pela fantasia serve como alegoria para o crescimento de uma criança, obrigada a resolver problemas muitas vezes causados por sua própria mão. A diferença é que "Chihiro" foi feito para o mundo, ao passo que "O Menino e a Garça" é o cineasta falando consigo mesmo.

Mesmo num mundo fantástico são as relações humanas que definem 'O Menino e a Garça'
Mesmo num mundo fantástico são as relações humanas que definem 'O Menino e a Garça' Imagem: Sato Company
Continua após a publicidade

A graça e beleza do resultado é testamento do talento monumental de Miyazaki para materializar sentimentos tão delicados. Ainda assim, não deixa de ser frustrante ver um mestre pincelar o mesmo quadro de antes, ainda que use novas tintas. Mesmo se mantendo à frente de seus pares, e com domínio técnico e narrativo invejáveis, "O Menino e a Garça" é o diretor em seu momento mais inexpressivo.

Hayao Miyazaki anunciara sua aposentadoria em setembro de 2013, logo depois de terminar os trabalhos em "Vidas ao Vento". Longe do sopro fantástico de sua obra, ele criou uma biografia sóbria, retratando a vida do inventor do Zero, avião desenhado para ser a máquina mais perfeita nos céus, que terminou usado por pilotos kamikaze durante a Segunda Guerra Mundial.

Talvez seu desejo fosse de fato descansar seu lápis retornando para o gênero fantástico que fez seu nome trilhar o mundo. "O Menino e a Garça" foi esboçado inicialmente em 2016, entrou em produção no ano seguinte e demorou para chegar aos cinemas especialmente pelos desafios impostos ao projeto durante a pandemia de covid.

Ao todos foram sete anos para materializar este mundo sublinhado por conflito e perda, traduzido em uma delicada, ainda que imperfeita, jornada de amadurecimento. Miyazaki saiu de sua aposentadoria por acreditar ainda ter algo a dizer, e "O Menino e a Garça" é uma declaração poderosa. Nas mãos de qualquer um, seria uma pérola de rara beleza. Hayao Miyazaki, repito, jamais será qualquer um.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Deixe seu comentário

Só para assinantes