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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Colorido e com grandes ideias, 'Barbie' só derrapa na própria ambição

Margot Robbie em "Barbie" - Warner
Margot Robbie em 'Barbie' Imagem: Warner

Colunista do UOL

20/07/2023 04h00

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"Barbie é tudo que você quer ser!" Era 1982 quando a boneca mais famosa do planeta chegou ao Brasil, ancorada por esse slogan e uma campanha de marketing gigante. Logo ela conquistou seu espaço, do mesmo jeito que já dominava o mercado nos Estados Unidos há duas décadas. Era fácil gostar da Barbie.

O mesmo pode ser dito de "Barbie", filme de Greta Gerwig que coloca Margot Robbie como a representação em carne e osso da boneca. É uma aventura colorida, por vezes engraçada, mas que também se preocupa em dar uma espiada cuidadosa em toda carga cultural acumulada pela marca desde seu lançamento. É para rir, refletir um pedaço e sair da sessão com um grande sorriso cor-de-rosa.

Greta Gerwig, contudo, tinha planos mais sofisticados quando assumiu o projeto. Em seu terceiro filme na direção, depois de "Lady Bird" e "Adoráveis Mulheres", a cineasta enxergou "Barbie" como plataforma para explorar temas mais complexos como consumismo e seu papel da cultura pop, a mentalidade corporativa e o estereótipo do machismo que não fica longe de um recorte bem real da turma churrasco-cerveja-mulher.

São ideias grandiosas que terminam reféns de um enredo que simplesmente não está lá. "Barbie" monta o tabuleiro e, em certos momentos, alcança suas ambições. Mas nenhum turbilhão de criatividade resiste em um filme mais preocupado com conceitos abstratos que com desenvolvimento real de trama e personagens. Greta, talentosa como é, desta vez deu o proverbial passo maior do que a perna.

A primeira metade de "Barbie" é sublime. É quando o filme revela a Barbielândia, em que dúzias de Barbies — presidente, médica, advogada, astronauta — reinam em sistema matriarcal nessa terra deliciosamente artificial. A direção de arte, que reproduz brinquedos de infância em escala real e totalmente interativos, é um deleite.

As Barbies não têm o que fazer a não ser aproveitar sua vida fabulosa, certas de seu triunfo em inspirar meninas no "Mundo Real" a ser quem elas querem ser. Entre seus acessórios está Ken — ou melhor, um exército de "Kens", que existem unicamente para admirar e cortejar as Barbies, sem profissão definida a não ser... "praia". Não existe Ken sem a Barbie, e esse equilíbrio parece funcionar.

Margot Robbie surge como a Barbie Estereotípica, sem função definida nessa sociedade utópica a não ser como imagem básica da boneca. Ela sorri, acirra a rivalidade entre os Kens, deseja tudo de bom para as amigas e organiza festas com muita música e muita dança, encerradas invariavelmente em um after só para as meninas. Revelada por Martin Scorsese em "O Lobo de Wall Street", Margot aqui também assina a produção e se empenha em conferir camadas à sua representação da Barbie.

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Ken (Ryan Gosling) e Barbie (Margot Robbie) partem para o mundo real
Imagem: Warner

O conflito surge quando Barbie/Margot passa a experimentar as sensações que não combinam com seu idílio colorido. Ela acorda descabelada, seus calcanhares passam a encostar no chão e sua mente é tomada por pensamentos de depressão e morte. Para resolver a questão, ela procura a Barbie Estranha (Kate McKinnon, perfeita), que lhe explica que cada uma delas tem sua versão no Mundo Real como brinquedos na mão de crianças.

A conclusão lógica é que a "dona" de Margot está experimentando algum tipo de crise, o que reflete nela na Barbielândia. A solução é romper a barreira para nosso mundo, encontrar a criança e resolver o problema. Barbie ganha a companhia inesperada de Ken (Ryan Gosling, totalmente confortável), retratado como um tonto, inteiramente devotado à "namorada", mas sem nenhuma bagagem para lidar com a realidade fora de seu mundo de fantasia.

Os problemas de Barbie começam justamente nessa transição. O filme abraça uma avalanche de ideias tão intensa que mal consegue dar conta de cada uma. Fica evidente que, por trás da caracterização no alvo, e do acerto que foi a revelação da Barbielândia, não há como se sustentar sem uma trama sólida que vá além de piadas e referências.

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Kate McKinnon é a Barbie Estranha em 'Barbie'
Imagem: Warner

O texto de "Barbie" está ancorado na estrutura da jornada do herói. Uma vez no Mundo Real (não que Los Angeles seja assim tão longe da fantasia), Margot descobre que a influência de bonecas de plástico, seja como inspiração, seja como símbolo de uma cultura danosa às mulheres, empalidece ante uma realidade que lida com problemas reais de pessoas reais.

Sua crise existencial é agravada quando executivos da Mattel, liderados por Will Ferrel, tomam ciência de sua presença em Los Angeles e partem em seu encalço. Ela encontra aliados em Gloria (America Ferrera) e Sasha (Ariana Greenblat), mãe e filha que buscam remendar sua própria relação, e que se mostram no centro do conflito que bagunçou a existência de Barbie.

Os problemas se multiplicam ainda mais quando Ken, zanzando pelo Mundo Real, descobre o poder da autoridade masculina e a dominância do patriarcado. Frustrado em não entender seu propósito, ele corre para a Barbielândia com a intenção de implantar um novo regime em que os Kens deixam de ser coadjuvantes e submissos. É nesse retorno que a jornada de Barbie, ao lado de aliados e inimigos, será resolvida.

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Barbie (Margot Robbie) descobre que o Mundo Real não é nem um pouco fofo
Imagem: Warner

O cinema do século 21 tem, basicamente, dois motores: propriedades intelectuais e nostalgia. São atributos encontrados em histórias em quadrinhos, seriados de TV e, claro, em brinquedos. "Barbie" não é a primeira experiência em traduzir um produto para o cinema. "Uma Aventura Lego", "Transformers" e "Battleship" são exemplos que vão do sublime ao terrível.

"Barbie" não ocupa nenhum dos polos. A aventura se mostra mais divertida do que sugeria a campanha de marketing exaustiva (que lembra a avalanche de "Batman" em 1989), mas termina menos esperta do que se propõe. Seu roteiro não precisa estar ancorado à realidade — afinal, é um exercício fantástico de metalinguagem —, mas precisava se aderir com firmeza às suas próprias regras.

Em vez disso, o filme não se esforça em costurar a própria trama. Os executivos da Mattel (liderados por Will Ferrell) repetem que Barbie é uma ameaça, mas em nenhum momento sabemos o motivo. A relação de Gloria e Sasha é mostrada como catalisador para a crise de Barbie, só que esse elo jamais é aprofundado. E é melhor nem mencionar a participação estranhíssima de Rhea Perlman como a criadora da boneca. Não dá para ser mais meta.

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A diretora Greta Gerwig e Ryan Gosling no set de 'Barbie'
Imagem: Warner

Onde "Barbie" brilha, no entanto, é na soma de suas partes erráticas. Os diálogos, que concentram o humor do filme, são divertidíssimos em suas referências à cultura pop. O elenco, especialmente Robbie e Gosling, compensa a fragilidade do enredo com seu total empenho. Existe a sátira bem dosada com a marca e seus executivos, com as noções de feminismo e patriarcado — mas nunca chega a ser uma subversão, já que o filme está satisfeito em sua própria pele plástica.

Mais satisfeitos ainda devem estar os próprios executivos da Mattel. Por anos a linha Barbie foi estigmatizada por representar a imagem de um padrão corporal inatingível. O filme vira o jogo ao sugerir que o problema não está em um pedaço de plástico, e sim entrelaçado em quem somos como sociedade. Não poderia ser diferente, visto que a Mattel assina os cheques e participou da produção do começo ao fim.

O feito de Greta Gerwig é, por fim, criar uma versão possível de "Barbie", mesmo com as óbvias limitações. Em sua defesa, o filme não parece sofrer com o dilema de dar risadas de si enquanto enche os bolsos. Ser uma comédia existencial pode não ser a conclusão esperada, mas é o melhor elogio que "Barbie" pode ter.

O que, por fim, segue no tema "tudo que você quer ser". "Barbie" pode não acertar todas as notas, mas compensa por ter de fato algo a dizer e iniciar uma conversa relevante de forma tão lúdica e divertida. Assim até fica fácil encarar uma sessão em um mar de camisetas cor-de-rosa — mesmo que eu não saiba até agora para que serve um "Allan".