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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Napoleão ganha trailer e internet mostra por que não merecemos coisas boas

Joaquin Phoenix em "Napoleão", de Ridley Scott - Sony
Joaquin Phoenix em 'Napoleão', de Ridley Scott Imagem: Sony

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"Napoleão", épico histórico dirigido por Ridley Scott, ganhou seu primeiro trailer. A palavra "épico" não é usada ao acaso. As primeiras imagens da produção sugerem uma produção grandiosa, um escopo que o diretor não abraçava pelo menos desde "Cruzada", de 2005. Em meio ao parque de diversões do cinemão atual, são dólares hollywoodianos usados em um filme para adultos.

Mas pode confiar nas redes sociais para encontrar defeito onde não existe e criar uma polêmica sem pé nem cabeça. Ao que parece, uma fatia de entusiastas do cinema achou por bem problematizar o idioma em que "Napoleão" é encenado. Para essa turma, é pecado inafiançável que o filme seja falado em inglês, e não em francês. Concordo inteiramente com o uso da língua nativa do imperador, caso fosse uma produção de seu país. Para frustração de um quinhão de cinéfilos, não é o caso.

Seria um comentário carregado de ironia se muita gente não o levasse absolutamente a sério. A reação é reflexo de uma tendência curiosa, observada especialmente em uma fatia do público que nasceu sem temer o bug do milênio, em demonstrar dificuldade para separar fato de ficção. É a extrapolação suprema de atores de novela hostilizados na rua por fazerem papel de vilão.

O cinema é a arte da ilusão. Para contar uma história, cineastas criam uma simulação do mundo real, de pessoas e personagens, de momentos e eventos. As cinebiografias, em particular, adaptam os fatos para que eles sejam, na falta de uma palavra melhor, cinematográficos. A narrativa de um filme precisa obedecer unicamente à história sendo contada. Uma comédia romântica ambientada na Indonésia pode ser falada em inglês. O que vemos em cena é meramente a representação do real.

O segundo fator é que, além de arte, cinema é também um produto, um investimento comercial. Um filme como "Napoleão", que custou cerca de US$ 130 milhões, precisa correr o mundo sem dar prejuízo. Justificar esse investimento passa por uma série de decisões, como atrelar a produção a um astro de renome internacional (no caso Joaquin Phoenix), que por sua vez vai fazer o que lhe pagam para fazer: interpretar um personagem, de preferência em sua língua. Dominação cultural é o nome do jogo, sorry.

Curiosamente, a indignação parece ser seletiva — ou é mesmo coisa de um recorte do público que precisa se engajar em absolutamente tudo. "As Aventuras de Tintim", de Steven Spielberg, não é falado em francês. "A Lista de Schindler" também não é em alemão. "300" passa longe do grego dórico, assim como David Lean não colocou seu elenco falando russo em "Doutor Jivago". Até o momento, não existe campanha de cancelamento para esses filmes.

O próprio Ridley Scott é reincidente do crime de filmar em inglês, já que ignorou o espanhol em "1492 - A Conquista do Paraíso" (e ainda fez o francês Gérard Depardieu interpretar Cristóvão Colombo!), o latim em "Gladiador" e o hebraico em "Êxodo: Deuses e Reis". Eu tenho cá para meus botões que os personagens em "Casa Gucci" também não falam italiano. Que feio, seu Ridley!

Escolher um sotaque, ou usar uma língua estranha a seu elenco, deve ser prerrogativa artística e criativa do diretor. Kathryn Bigelow não fez Harrison Ford e Liam Neeson aprenderem russo em "K-19", mas adotou um sotaque carregado que trouxe a atmosfera estrangeira que ela buscava. Mel Gibson insistiu em usar latim e aramaico em "A Paixão de Cristo", e lucateque em "Apocalypto", e os resultados foram incríveis. Ponto pacífico: o artista escolhe.

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Ridley Scott volta ao campo de batalha em 'Napoleão'
Imagem: Sony

O imperador Napoleão Bonaparte, uma das figuras mais célebres e controversas da história, já foi retratado por dúzias de diferentes atores, no cinema e na TV, ao longo do último século. Albert Dieudonné assumiu o papel em 1927 no épico do cinema mudo francês "Napoleão". Marlon Brando fez dele um herói romântico em "Désirée, o Amor de Napoleão" de 1954.

Em 1970, "Waterloo" colocou Rod Steiger como o líder militar em uma superprodução bancada pelo italiano Dino De Laurentiis, com boa parte da conta assumida pela União Soviética, que também abrigou a produção. Terry Camilleri mostrou o lado cômico do imperador na fantasia "Bill & Ted - Uma Aventura Fantástica". Já Ian Holm, fominha, foi Napoleão na minissérie britânica "Napoleon and Love", e no cinema em "Bandidos do Tempo" e, já no novo milênio, em "As Novas Roupas do Imperador".

O projeto mais ambicioso envolvendo o general francês talvez tenha sido "Napoleão", desenvolvido por anos por Stanley Kubrick, considerado "o maior filme jamais feito". O projeto nasceu após o diretor terminar "2001: Uma Odisseia no Espaço", de 1968, quando Kubrick já tinha em mãos uma pesquisa considerável sobre a vida do imperador.

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Napoleão (Joaquin Phoenix) é coroado imperador da França
Imagem: Sony

O diretor planejou um épico grandioso e de orçamento milionário, com cenários babilônicos e cenas de batalha que contariam com dezenas de milhares de figurantes. Jack Nicholson já estava escalado para o papel principal quando o estúdio, talvez assustado com a péssima recepção do "Waterloo" soviético em 1970, cancelou o projeto. Todo o material de pesquisa e desenvolvimento dessa versão de "Napoleão", inclusive o roteiro original de Kubrick, estão nas mãos de Steven Spielberg, que espera desenvolver o projeto como uma minissérie para a HBO.

É possível que o responsável por "A.I. - Inteligência Artificial", também um filme não realizado por Stanley Kubrick, tenha de pisar no freio. O "Napoleão" com direção de Ridley Scott, que não tem absolutamente nenhuma relação com a ideia de Kubrick, chega aos cinemas em novembro deste ano, capturando, ao menos por um tempo, a atenção sobre a vida do líder militar francês.

Mas é questão de tempo. A trajetória de Napoleão Bonaparte, assunto inesgotável, nas artes, no mundo acadêmico e no tecido cultural, deve seguir indefinidamente no holofote histórico. Mesmo que, ao menos nessa versão assinada por Ridley Scott e encabeçada por Joaquin Phoenix, ele fale em inglês. Para quem não consegue suportar tamanha empáfia, a dica é viajar e assistir a "Napoleão" na França. Boa parte dos filmes estrangeiros exibidos nos cinemas parisienses são dublados.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, o personagem Tintim foi publicado originalmente em francês, não existe 'belga' como idioma. A informação foi corrigida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL