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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Os Fabelmans': Spielberg revisita suas origens em carta de amor ao cinema

Gabriel LaBelle em "Os Fabelmans" - Universal
Gabriel LaBelle em 'Os Fabelmans' Imagem: Universal

Colunista do UOL

12/01/2023 04h00

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Logo na primeira cena de "Os Fabelmans", Sammy Fabelman é levado por seus pais, ainda criança, para sua primeira sessão de cinema. O filme era "O Maior Espetáculo da Terra", que Cecil B. DeMille dirigiu em 1952. Ao fim da sessão, ele parece atordoado, as engrenagens em sua cabeça ainda processando a magia e o impacto daquela experiência.

Foi mais ou menos o efeito que Steven Spielberg causou em seu público ao longo das últimas cinco décadas. De "Encurralado" até o espetacular "Amor, Sublime Amor", o cineasta redefiniu a arte do entretenimento.

Ele reproduziu em plateias no mundo inteiro, em filmes como "Tubarão", "Os Caçadores da Arca Perdida", "Jurassic Park" e "O Resgate do Soldado Ryan", a mesma sensação que experimentou na sala de cinema em 1952.

"Os Fabelmans" é uma autobiografia em que personagens reais são maquiados com o véu da ficção. Se existe muito da infância e adolescência de Spielberg no roteiro co escrito por Tony Kushner, há também espaço para dramatização, para extrapolar suas próprias lembranças.

Não é por acaso que a descoberta da paixão e do talento de Sammy Fabelman (vivido pelo excelente Gabriel LaBelle) para o cinema são o motor de "Os Fabelmans", mas não seu coração. No centro emocional do filme está o retrato de uma família indubitavelmente apaixonada, mas que aos poucos se esfarela na América do pós Guerra.

As duas narrativas são costuradas com a habilidade que Spielberg sempre dominou. Ele usa um roteiro simples (mas nunca simplório) para enfatizar as sutilezas de sua trajetória. Mais ainda: ele mapeia a forma em que essas sutilezas são transformadas em emoção condensada em imagens em movimento. Em entretenimento.

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O pequeno Sammy Fabelman (Mateo Zoryan) descobre a magia do cinema
Imagem: Universal

Um bom exemplo acontece ainda no primeiro ato de "Os Fabelmans", quando Sammy (interpretado quando criança por Mateo Zoryan) fica obcecado com a cena do acidente de trem em "O Maior Espetáculo da Terra".

Enquanto seu pai, Burt (Paul Dano) o encoraja a entender a ciência que impulsiona o mundo ao lhe dar trens elétricos de presente, é sua mãe, Mitzi (Michelle Williams) quem o incentiva a filmar sua própria versão, dando-lhe "controle" sobre a ideia fixa. Quando ela vê o filme rodado por Sammy, em uma cena de rara beleza, percebe o nascimento de um artista.

Esse equilíbrio de razão e emoção, o mesmo que futuramente causaria uma cisão em sua família, é determinante para Sammy navegar ao longo de sua adolescência. A mesma paixão por filmes que aos poucos vai lapidando seu futuro também se torna causa de dor e angústia ao lhe proporcionar uma revelação involuntária. A união da mente pragmática de seu pai e do espírito livre de sua mãe aos poucos moldam sua própria personalidade.

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Paul Dano e Michelle Williams em 'Os Fabelmans'
Imagem: Universal

Não é todo artista que tem a chance de observar o próprio passado, e "Os Fabelmans" não foge de uma certa auto indulgência ao romantizar seu próprio legado. "Belfast" e "Bardo" são dois exemplos recentes de resgate histórico em que as falhas são superadas pelo talento de seus realizadores.

O que surpreende nessa jornada empreendida por Spielberg é sua disposição em escancarar os próprios defeitos - e, num grau ainda mais acentuado, os de seus pais -, ao mesmo tempo em que adota um tom reconciliador, de ternura e compreensão. Aos 76 anos, e depois de expor em diversas vezes sua visão de famílias fragmentadas em sua arte, o diretor finalmente compartilha com o mundo que está em paz com suas próprias origens.

"Os Fabelmans" não é, portanto, um "filme de Steven Spielberg" no sentido tradicional. Não existe coerência narrativa no sentido de as ações se conectarem em crescendo culminando num final emocionante e apoteótico. Sua opção foi fazer um mosaico, por vezes confuso e bagunçado, uma opção artística acertada para reproduzir o caos da vida real.

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Steven Spielberg dirige Gabriel LaBelle no set de 'Os Fabelmans'
Imagem: Universal

Estes fragmentos, entretanto, são recortes por vezes de beleza arrebatadora, outras de carga emocional intensa. Que o diga Judd Hirsch. Em uma única cena, como um tio distante da família Fabelman, ele realinha o olhar de Sammy para a arte e lhe explica que não existe criação sm dor. É um diálogo bonito, dirigido com precisão cirúrgica, que só poderia ser executado por um verdadeiro artista.

São estes momentos, que juntam o drama familiar com o nascimento de um artista, a matéria-prima para Steven Spielberg transformar suas lembranças e experiências em arte e entretenimento.

"Os Fabelmans" pode ser sentimentalóide, pode passar reto em algumas perguntas que ficam sem resposta, pode até ser descaradamente egocêntrico. Mas é também um filme lindo e delicado, que tem o poder de lembrar a cada um de nós porque nos apaixonamos pelo cinema.