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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Batman - O Retorno': Os 30 anos da aventura mais estranha do Homem-Morcego

Michael Keaton em "Batman - O Retorno" - Warner
Michael Keaton em 'Batman - O Retorno' Imagem: Warner

Colunista do UOL

19/06/2022 08h48

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"Não foi um grande filme, foi mais um fenômeno cultural." Tim Burton definitivamente não estava contente quando dirigiu "Batman" em 1989. Esgotado com a batalha criativa travada com os produtores ao longo das filmagens, o diretor só ficou feliz ao se afastar das aventuras do Homem-Morcego.

O estúdio, porém, queria Burton de volta de qualquer jeito. "Batman" fechou as contas com mais de US$ 400 milhões em caixa. Sua estética sombria foi sabiamente vista como um dos motivos do sucesso, o tal "fenômeno cultural" que mudou a forma de fazer, vender e consumir um filme.

Para atrair o diretor, os executivos lhe prometeram carta branca, liberdade para tocar a nova aventura do herói com o mínimo de interferência. Burton topou e tratou de criar um filme com sua assinatura, temática e visual, que calhou de ter o Batman na mistura.

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Michelle Pfeiffer e Michael Keaton na cena mais emblemática de 'Batman - O Retorno'
Imagem: Warner

"Batman - O Retorno" estreou há exatos 30 anos, e até hoje é a melhor aventura do Homem-Morcego no cinema. O conto de fadas gótico com uma pitada de sátira social, em que a trama é construída em torno de figuras grotescas e solitárias, mostrou-se o veículo perfeito para traduzir o herói fora dos quadrinhos.

Inicialmente, o projeto trazia o mesmo roteirista de "Batman", Sam Hamm, que desenhou uma história mais convencional e alinhada com as HQs. Com o Pinguim e a Mulher-Gato como vilões, uma exigência irredutível do estúdio, seu roteiro colocava a dupla buscando um tesouro escondido em Gotham.

Batman, claro, frustrava o plano, ao mesmo tempo em que Bruce Wayne estreitava sua relação com Vicky Vale (interpretada por Kim Basinger no filme anterior). O estúdio também queria Robin na mistura, e o ator Marlon Wayans chegou a ser escolhido para viver essa versão do parceiro do Homem-Morcego.

Ao assumir o projeto, porém, Tim Burton mudou absolutamente tudo. Expressando seu descontentamento com o filme anterior, ele de cara livrou-se da personagem de Basinger e, na sequência, tirou Robin da jogada. Sem o fardo de continuar uma história, ele convocou o roteirista Daniel Waters, da comédia ácida "Atração Mortal", para jogar a trama de Hamm no mato e bolar uma narrativa mais alinhada com sua sensibilidade.

"Batman - O Retorno", então, apresentou um Pinguim não como um gângster excêntrico, mas como um órfão que reina nos esgotos de Gotham. A Mulher-Gato, por sua vez, deixou de ser uma ladra habilidosa para ser mostrada como uma secretária que, deixada para morrer, renasce com desejo de vingança de seu algoz.

Esse papel coube a Max Shreck, personagem inexistente nos gibis, um milionário manipulador que envolve o Pinguim em um esquema para que o vilão deformado torne-se prefeito da cidade (ideia inspirada em dois episódios da série de TV do Batman dos anos 1960). Shreck, oposto moral de Bruce Wayne, termina como grande antagonista do filme.

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Michael Keaton e Tim Burton no set de 'batman - O Retorno'
Imagem: Warner

A grande mudança, entretanto, foi com seu protagonista. No filme de 1989, Batman termina sua aventura como o protetor de Gotham, deixando clara sua missão para vigiar a cidade. Michael Keaton, que condicionou sua volta a uma história sem amarras com a anterior, surge aqui como um Bruce Wayne ainda mais isolado em sua mansão, ganhando alguma tração apenas quando convocado como Batman.

Uma das maiores reclamações em torno dos filmes de Tim Burton é sua disposição em tornar o Batman um coadjuvante de suas próprias histórias. Curiosamente, foi o próprio Michael Keaton quem cortou a maior parte das falas de seu personagem - o ator acreditava, e com razão, que a imagem imponente do herói tinha mais poder do que discursos no meio da ação.

Os beneficiários dessa decisão foram Danny DeVito, que encarou seu trabalho como o Pinguim como uma ópera moderna, e Michelle Pfeiffer, que ficou com o papel de Selina Kyle, a Mulher-Gato, depois de Annette Bening, originalmente escalada para o filme, engravidar e se retirar do projeto. O estúdio ainda flertou com a ideia de David Bowie como Max Shreck, mas Burton bateu o pé com Christopher Walken por se sentir intimidado pelo ator.

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Danny DeVito fez do Pinguim uma aberração atormentada
Imagem: Warner

A fórmula do blockbuster moderno, sugerida por "Batman", lapidada em "Homem-Aranha", aperfeiçoada em "Batman Begins" e transformada em regra pelo universo cinematográfico da Marvel, quase implodiu com "Batman - O Retorno".

Toda a construção de séries ancoradas em propriedades intelectuais trabalha com o conceito da expansão, no sentido de cada filme mover as engrenagens para seu sucessor. A Marvel, com suas cenas pós-créditos, fez dessa embalagem uma arte.

Esse processo é amparado por um trabalho de marketing que efetivamente transforma filmes em produtos, com brinquedos, videogames e uma infinidade de traquitanas planejadas para ampliar seu impacto na cultura pop. O cinema de super-heróis hoje existe para alimentar o cinema de super-heróis.

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Max Shreck (Christopher Walken) é o grande vilão de 'Batman - O Retorno'
Imagem: Warner

"Batman - O Retorno", por sua vez, é a antítese da ideia do blockbuster moderno, uma produção gigante que não possui a menor vocação para ser vendida como parte de uma série. Tim Burton, que começou a ouvir termos como "franquia" à distância enquanto trabalhava no filme, afastou conscientemente o conceito de expansão.

Em vez disso, ele criou em "O Retorno" um mundo que parece menor que o de "Batman". A arquitetura gótica de inspiração do expressionismo alemão é usada aqui não para aumentar o escopo da produção, e sim para sufocar ainda mais seus protagonistas. Em telhados e esgotos, na mansão Wayne e na Batcaverna, tudo parece amplificar a sensação de alienação dos protagonistas.

A própria jornada do Batman é a negação do herói triunfante, pronto para defender sua cidade do próximo vilão. "Você tem inveja porque eu sou uma aberração genuína, e você precisa usar uma máscara", grita o Pinguim. "Você tem razão", responde o Homem-Morcego, sublinhando o desejo de Tim Burton em mostrar o Batman como alguém igualmente perturbado, e não como herói.

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O Batman volta triunfante às ruas de Gotham City
Imagem: Warner

"Batman - O Retorno" foi um sucesso inegável, faturando US$ 266 milhões em todo o mundo. Ainda assim, a conta fechou com quase US$ 150 milhões de diferença de seu antecessor. O mundo abraçou mais uma vez o Homem-Morcego, mas dessa vez com ressalvas.

Os motivos logo ficaram claros. A Warner recebeu milhares de cartas de pais indignados, questionando por que o estúdio havia lançado um filme que apavorou seus filhos. Longe de ser a "aventura de super-heróis" que levaria famílias ao cinema na temporada do verão americano, "Batman - O Retorno" mostrou-se um pesadelo sombrio, recheado de insinuações sexuais e sem um final feliz e triunfante.

O McDonald´s, principal parceiro promocional do estúdio, tinha o Batman e seus vilões estampados nas caixas do McLanche Feliz. O que eles terminaram "vendendo" foi um filme com corpos eletrocutados, crianças ameaçadas de morte e em que o Pinguim, além de arrancar o nariz de um sujeito a dentadas, e de planejar a morte de todas as crianças de Gotham, termina vomitando em si mesmo uma gosma negra. Coisa fina.

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Selina Kyle e Bruce Wayne em momento íntimo e pessoal antes do caos
Imagem: Warner

O que era para ser a sequência festiva de um dos maiores fenômenos da história do cinema, terminou como exemplo de como não conduzir um candidato a blockbuster.

Depois de "Batman - O Retorno", os grandes estúdios se tornaram reticentes em ceder liberdade criativa a um cineasta. O que existe é um trabalho dentro de parâmetros. Sam Raimi em "Homem-Aranha 2" e Christopher Nolan em "Batman - O Cavaleiro das Trevas" são exceções honrosas.

Tim Burton chegou a se empolgar para retornar pela terceira vez ao mundo do Homem-Morcego. Mas o diretor logo percebeu que a recepção pouco entusiasmada de fãs, do estúdio e, claro, do McDonald's, abreviaram sua estadia em Gotham City.

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Em 'Batman - O Retorno', o esgoto de Gotham é o lar do Pinguim
Imagem: Warner

Sem Burton na jogada, o estúdio entregou a série a Joel Schumacher. Os fabricantes de brinquedos e a rede de fast food não tiveram do que reclamar quando "Batman Eternamente", de 1995, mostrou-se fértil para a criação de brinquedos em uma aventura feita para crianças.

A visão brilhante de Tim Burton, e seu flerte com a dualidade dos personagens, foram enterrados nas cenas finais do filme de Schumacher. Quando Val Kilmer, agora no papel do herói, diz que é "tanto Bruce Wayne como Batman", as áreas cinzentas de "Batman - O Retorno" foram definitivamente apagadas.

Dois anos depois, "Batman & Robin" mostrou o equívoco que era pensar em cinema apenas como produto, e tornou-se uma piada com diálogos ruins e elenco perdido. O fracasso comercial e criativo foi tão absoluto que o herói só voltou aos cinemas oito anos depois, em um filme que trocava o comercial de brinquedos por uma abordagem hiper realista: "Batman Begins".

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Bruce Wayne (Michael Keaton) desperta de sua apatia com a luz do Batsinal
Imagem: Warner

O cinema de super-heróis vive hoje seu auge. Existe espaço para as produções da Marvel e da DC, dominando tanto o cinema quanto o streaming. Os estúdios aprenderam a jogar o jogo, com suas propriedades intelectuais atraindo cineastas e atores em busca de flexionar outros músculos criativos, sem deixar de lado toda a avalanche de marketing que acompanha cada lançamento.

Nenhum filme, contudo, atreveu-se a quebrar o molde como "Batman - O Retorno" o fez três décadas atrás. Não existe mais espaço no cinema moderno para que um autor do quilate de Tim Burton tenha liberdade para se divertir na caixinha de brinquedos de uma grande corporação.

"Batman - O Retorno" permanece, portanto, como um grande paradoxo. É tanto o símbolo de um momento em que a cultura pop mudou de forma irremediável, como da resistência a não se entregar ao monstro que ele mesmo criara. É o cinema autoral em sua forma mais livre, trabalhando no coração de uma grande corporação. Dois polos antagônicos, traduzidos no que ainda é, indiscutivelmente, o melhor filme do Batman.