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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Benedetta', Verhoeven e a importância do sexo para contar uma história

Sexo e fé se entrelaçam em "Benedetta" - Imovision
Sexo e fé se entrelaçam em 'Benedetta' Imagem: Imovision

Colunista do UOL

18/01/2022 04h15

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Aconteceu há quase trinta anos. Ao cruzar as pernas durante um interrogatório em uma sala cheia de policiais, usando nada além de um vestido curto e total domínio da situação, Sharon Stone tornou-se uma estrela e o thriller "Instinto Selvagem", um escândalo. Não que o cinema ianque fosse, digamos, tão pudico. Poucas vezes, entretanto, o sexo era usado como ferramenta narrativa de forma tão impactante como nas mãos do diretor Paul Verhoeven.

Diz muito sobre o estado da cultura pop quando, três décadas depois, Verhoeven lança um novo filme, "Benedetta", e todo seu marketing é construído em torno de sexo. "Polêmico", "ousado", "profano". Os adjetivos enfeitam a história da freira que, envolvida com uma noviça na Itália renascentista, sofre de visões religiosas e eróticas em uma história sobre ambição, sacrifício e fé.

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Paul Verhoeven dirige cena de 'Benedetta'
Imagem: Imovision

O sexo é, claramente, fundamental para o desenvolvimento da trama. Parte do arco dramático de Benedetta Carlini, a freira tomada por alucinações que podem ser intervenção divina ou um simples mecanismo de defesa e auto preservação, envolve fantasias sexuais com Jesus Cristo, a quem ela repete constantemente ser "seu marido". Já no plano terreno, é seu relacionamento com outra freira, Bartolomea, que dispara os conflitos movendo a trama.

A impressão que "Benedetta" não passa de exercício fetichista de Verhoeven é logo dissipada quando os momentos mais gráficos do filme concentram-se em uma única cena. Sua intensidade, guiada pelo desempenho das atrizes Virginie Efira e Daphne Patakia, além do uso criativo de uma pequena figura de madeira da Virgem Maria, determina o caminho e o destino das personagens, que navegam em um terreno dominado pela ignorância religiosa e pelo avanço da peste negra que varreu a Europa.

Não é, claro, um equilíbrio fácil. Poucos diretores além do próprio Paul Verhoven seriam capazes de ir além do "filme das freiras lésbicas" e abraçar um texto de potencial tão explosivo com uma mistura inusitada de erotismo, perigo e, quem diria, bom humor - lembre-se de "Jesus guerreiro" ao ver o filme.

"Benedetta" não é, claro, um triunfo tão completo quanto seu filme anterior, "Elle", em que a personagem de Isabelle Hupert tece um jogo de sedução com o homem que a estuprou. Mas é uma adição sólida à filmografia do homem que criou pérolas como "A Espiã", "Tropas Estelares" e, sua grande obra prima,"RoboCop".

Ainda assim, é curioso observar como o sexo é visto como seu o elemento mais chocante. O que nos remete de volta a "Instinto Selvagem" e o triunfo de Sharon Stone como uma protagonista que mastiga os homens a seu redor - em especial o policial interpretado por Michael Douglas - e que encara o sexo como... Bom, como algo rotineiro na vida adulta.

É com pesar imaginar que um thriller como "Instinto Selvagem", uma historia para adultos e bancada por um grande estúdio como candidato a blockbuster, dificilmente sairia da gaveta intacto no tabuleiro cinematográfico do século 21. O motivo é simples: o cinema mainstream hoje é uma criatura assexuada.

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O momento em que Sharon Stone se torna uma estrela em 'Instinto Selvagem'
Imagem: Columbia

O cinemão sempre teve uma relação saudável, ainda que atribulada com o sexo. Em especial a partir doa anos 1970, quando a geração de cineastas da "nova Hollywood" trouxe uma revolução de formas e costumes, trazendo adultos de verdade em relacionamentos de verdade. Um dos momentos mais emblemáticos de "Kramer vs. Kramer", drama com Dustin Hoffman e Meryl Streep como um casal disputando a custódia do filho pequeno, envolve uma convidada de Hoffman e um encontro constrangedor pós-coito.

Como ferramenta para alavancar a narrativa, o sexo pode ser um recurso brilhante. É assim, só para ficar em filmes mais recentes e não mergulhar na história do cinema, em dramas como "Fim de Caso", de Neil Jordan, e "O Segredo de Brokeback Mountain", de Ang Lee. Na belíssima cena no campo de trigo em "Match Point", de Woody Allen. Na manipulação mesquinha de Nicole Kidman sobre o adolescente Joaquim Phoenix em "Um Sonho Sem Limites".

Depois do sucesso de "Instinto Selvagem", os anos 1990 viram também uma procissão de produções que apostavam no sexo como chamariz de bilheteria, mesmo que não houvesse uma trama sólida para justificar. Foi o caso de fiascos como "Jade", com Linda Fiorentino, ou "Corpo em Evidência", com Madonna. A própria Sharon Stone quase perdeu-se na repetição com o insosso "Invasão de Privacidade", sendo depois resgatada brilhantemente por Martin Scorsese em "Cassino".

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Rose (Kate Winslet) faz pose e escreve seu nome na história em 'Titanic'
Imagem: Fox

"Benedetta" é uma oportunidade rara para assistir no cinema a um filme com adultos e para adultos que usa o sexo como motor narrativo. Claro que, para isso, precisamos fugir das produções americanas e do cinema mainstream, buscando refúgio no muito mais receptivo cinema independente. Tirando isso, as salas seguem forradas de super-heróis e animais animados, de carrões tunados e adolescentes fugindo de assassinos. Tudo isso sem a menor sugestão sexual.

O que é curioso. Ente ano também celebra o jubileu de prata (tive de consultar...) de "Titanic", uma das maiores bilheterias do cinema de todos os tempos. Um filme com adultos e para adultos que certamente não seria o mesmo sem o motor do desejo sexual, que nos privaria de uma das cenas mais emblemáticas do cinema moderno se Rose, de beleza quase angelical, não se despisse ao pedir para Jack desenhá-la como "uma de suas garotas francesas".