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Roberto Sadovski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'A Crônica Francesa' é mais do mesmo por Wes Anderson - o que é ótimo!

Timothée Chalamet em "A Crônica Francesa" - Reprodução/YouTube
Timothée Chalamet em "A Crônica Francesa" Imagem: Reprodução/YouTube

Colunista do UOL

17/11/2021 04h00

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Os Ramones foram uma das maiores bandas de rock do mundo. Inventores do punk, sua música era crua e direta: Joey mandava seu "1, 2, 3, 4!" por trás de seus óculos escuros e disparava uma parede sonora de músicas curtinhas, sem firulas, se concessões. Ouvir um novo disco dos Ramones era saber exatamente o que esperar, e terminar com um sorrisão do mesmo jeito.

Wes Anderson é mais ou menos como os Ramones. A cada novo filme, o diretor de 52 anos usa do mesmo arsenal para criar histórias peculiares, perfeitamente simétricas, com paleta de cores refinada e um pelotão de atores que o ajuda a desenhar suas comédias ligeiras.

Sabemos exatamente o que esperar quando Anderson anuncia um novo filme, e também sabemos que as expectativas serão plenamente atendidas. É o conforto da repetição, é a surpresa em como ele mistura sua receita.

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Bill Murray e Owen Wilson em 'A Crônica Francesa'
Imagem: Searchlight

"A Crônica Francesa", seu filme número dez, talvez seja o mais "Wes Anderson" em sua filmografia. Seus temas recorrentes - o humor marcado pela melancolia, as amizades e os amores inusitados, o olhar agudo sobre as relações familiares - estão todos lá. A disposição de peças no tabuleiro que, mais uma vez, faz toda a diferença.

Seguindo sua tradição em ser o mais europeu dos realizadores americanos, Anderson cravou a ação de "A Crônica Francesa" na cidade fictícia de Ennui-sur-Blasé (algo como "tédio sobre a apatia"), em que o editor Arthur Howitzer Jr. (Bill Murray, o MVP do diretor) sofre um infarto, fazendo com que seus colunistas preparem uma última edição do jornal, fazendo ao mesmo tempo um passeio pela memória.

Anderson vai além da ambientação em um fragmento imaginário da França, costurando também uma homenagem apaixonada ao cinema francês e ao carinho do olhar estrangeiro no país de Truffaut, Renoir e Malle.

Ao tecer sua antologia, ele livra-se das amarras de uma narrativa linear e usa essa liberdade em contos tão díspares que trazem em comum a interpretação do jornalismo como ferramenta para extrair poesia do banal, injetando personalidade ao relato dos fatos.

Murray é o elo comum entre histórias tão absurdas. A primeira envolve um artista plástico prodígio (Benidio Del Toro), preso por homicídio e apaixonado por sua musa (Léa Seydoux), uma guarda da prisão. Em seguida, uma jornalista (Frances McDormand) envolve-se com o líder de uma revolução estudantil (Timothée Chalamet) que pode ser resolvida em uma partida de xadrez. Finalmente, um policial que também é um chef lendário (Stephen Park) torna-se peça-chave para desbaratar o sequestro do filho do comissário da polícia local (Mathieu Amalric) - o que inclui uma sequência em animação.

O estilo excêntrico de Anderson já respirava no pescoço em seus primeiros filmes, "Pura Adrenalina" e "Três É Demais" (títulos absurdos para "Bottle Rocket" e "Rushmore"). Foi com "Os Excêntricos Tenenbaums", porém, que ele passou a experimentar sua obsessão com simetria em tramas agridoces com mais liberdade.

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Benicio Del Toro e Léa Seydoux em 'A Crônica Francesa'
Imagem: Searchlight

Aos poucos a estrutura narrativa mais linear foi fragmentada, com o exercício em estilo tornando-se tão indispensável quanto o texto afiado. Foi assim em aventuras mais modestas como "Viagem a Darjeeling", na comédia em stop motion "O Fantástico Sr. Raposo" e também na aventuras quase infantil "Moonrise Kingdom".

Sua obra mais bacana, mais sofisticada, refinada e envolvente veio em 2014. "O Grande Hotel Budapeste" assumiu seu "universo alternativo" em uma Europa dos sonhos, combinando uma história sobre os espólios da guerra e o valor da amizade e do amor com uma produção cheia de estilo e beleza, de risos honestos e lágrimas inevitáveis.

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Bill Murray e Jeffrey Wright em 'A Crônica Francesa'
Imagem: Searchlight

"A Crônica Francesa" é a expressão máxima e muito particular de um artista faminto por histórias sobre crime, revolução, desencontros e amor. Wes Anderson é um autor de verdade, um dos poucos ainda operando sob as asas de um grande estúdio. Como se estivesse escondido aprontando uma travessura, esperando se safar do olhar de seus tutores.

Seu próximo filme é "Asteroid City", ainda sem data para ser lançado, rodado entre agosto e outubro deste ano na Espanha. Além de Bill Murray (claro), o elenco gigante ainda inclui Tilda Swinton, Adrien Brody, Jeff Goldblum, Jason Schwartzman e, entrando na trupe do diretor, Tom Hanks e Margot Robbie. Deve ser confortável, agradável, simétrico e sofisticado como seus outros filmes. E, também, igualmente saboroso. Aposto sem medo.