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'Sweet Tooth': híbridos, pandemia e a criação de um fim do mundo muito fofo
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Em "Sweet Tooth", série inspirada na história em quadrinhos de Jeff Lemire, o mundo é assolado por uma pandemia mortal, que em pouco mais de uma década altera profundamente a arquitetura socioeconômica global.
Governos entram em colapso quando milhões morrem. Sobreviventes ora tentam incessantemente buscar uma cura, ora organizam-se em milícias para encabeçar o novo xadrez global. Ah, e surge também uma geração de crianças híbridas, metade humanos, metade animais.
Talvez não fosse o tema de um pedaço de entretenimento para esse momento, em que o mundo ainda sofre os efeitos de uma pandemia que já dura mais de um ano. O resultado, porém, afasta-se da escuridão para flertar com a luz.
Mesmo enquanto vários países aos poucos sufocam o poder do vírus (menos por aqui, já que estamos no fim da fila da normalidade por conta de descaso e incompetência), "Sweet Tooth" consegue trazer um pouco de esperança, mesmo que seja traduzida em fantasia. E poucas vezes o fim do mundo conseguiu ser tão... fofo!
"O que me empolgou foi justamente o ponto de vista diferente sobre o que pode ser um apocalipse", explica a roteirista e produtora Beth Schwartz, que falou comigo ao lado do produtor Jim Mickle e do quadrinista Jeff Lemire. "Não acho que toda história distópica precise trazer um tom sombrio e visual com poucas cores. 'Sweet Tooth' tinha mais coração, esperança, brilho e beleza. E isso faz toda a diferença."
Jim Mickle, responsável por transformar a HQ em série, espelha a mesma opinião. "A natureza também faz diferença. Eu cresci em uma área rural, cercado por florestas e fazendas, o que para mim seria o ideal de perfeição", continua. "Eu adoro que Gus nasceu e foi criado em um lugar assim e sempre carrega esse sentimento com ele. É um modo diferente de encarar este mundo."
"Gus", no caso, é o personagem que batiza a série. Interpretado por Christian Convery, ele é um híbrido, um garoto de 10 anos que é metade humano e metade cervo. "Sweet Tooth" começa justamente quando ele é criança, quando seu pai (Will Forte) abandona o mundo civilizado justamente quando a pandemia começa a mudar o panorama global, isolando-se em uma reserva florestal para criar Gus.
A questão central de "Sweet Tooth", tanto na série quanto nos quadrinhos originais, é a jornada de grupos diferentes e antagônicos para descobrir se a ascensão dos híbridos está relacionada com o vírus, o "grande flagelo" que dizimou a civilização como conhecíamos.
O canadense Jeff Lemire publicou a HQ pelo extinto selo Vertigo da DC Comics entre 2009 e 2013, acompanhando a saga de Gus em um mundo violento, em que o cinismo e a natureza bélica da humanidade (ou pelo menos dos que foram poupados pela praga) encontram uma barreira na ingenuidade e inocência do garoto.
Nos quadrinhos, "Sweet Tooth" é muito mais violenta e sem esperança do que na adaptação em streaming, que opta por um tom mais otimista. "Desde que eu criei a série, em 2008, 2009, vimos dúzias de histórias pós-apocalípticas em filmes e séries", explica o artista. "Se Jim e Beth seguissem exatamente o que eu fiz, com um tom mais árido, seria um clichê, algo que já vimos uma dúzia de vezes."
Lemire ressalta que a a reinvenção era necessária para refletir o mundo em que estamos agora, até para acompanhar a velocidade nas mudanças que experimentamos na última década. "Sem falar que toda adaptação precisa ser diferente do material original para ser bem-sucedida", ressalta. "Se os quadrinhos funcionam muito bem sozinhos, uma série deve seguir o mesmo pensamento."
Para a dupla de produtores, que trabalhou ao lado do casal Susan e Robert Downey (sim, o Homem de Ferro!), a chave para um tom mais leve foi sempre usar o ponto de vista de Gus. "Ele é diferente de tudo", continua Mickle. "Tudo que ele vê vai parecer absurdo. Por exemplo, ele nunca viu plástico, ele nunca viu a cor rosa, nunca ouviu música, e isso nos deu muitas oportunidades para mergulhar em um mundo muito original."
Beth Schwartz completa: "O que também nos ajudou foi imaginar um mundo em que algumas pessoas prosperaram, mesmo em meio a uma tragédia, o que não é comum em uma história pós-apocalíptica". Gus divide a cena, então, com Jepperd (Nonso Anozie), ex jogador de futebol que o acompanha em sua jornada; o cientista Aditya Singh (Adeel Akhtar), desesperado em busca da cura para o flagelo; Aimee Eden (Dania Ramirez), dedicada a resgatar híbridos; e Bear (Stefania LaVie Owen), adolescente que lidera um exército que abraça os híbridos como o futuro do planeta.
A produção de "Sweet Tooth" também serviu como laboratório para observar uma série de grande porte rodada em meio a uma pandemia real. A equipe foi autorizada pelo governo neozelandês para filmar no país em julho de 2020, e depois de uma pausa forçada pelos protocolos para lidar com a Covid, os trabalhos foram finalizados entre outubro e dezembro.
"Foi bem louco, porque tudo estava acontecendo em tempo real, então era difícil entender de verdade a gravidade da situação", lembra Beth. "Mas foi catártico, de certa maneira, escrever uma série sobre uma pandemia trazendo uma visão mais otimista enquanto vivíamos tempos mais sombrios."
A primeira temporada de "Sweet Tooth" já havia sido mapeada bem antes do começo da pandemia, mas o mundo real fez os roteiristas adicionarem alguns detalhes. "Três roteiros estavam prontos e estávamos trabalhando no quarto episódio quando mudamos nossa sala de roteiristas para encontros via zoom", aponta a produtora. "Não alteramos as histórias, mas o trem de passageiros do quarto capítulo, por exemplo, virou um transporte de carga por causa dos protocolos de Covid."
"Fazer a série nos deu foco", ressalta Mickle. "Se não fosse isso acho que eu ia pirar! Eu conversava com amigos que sequer sabiam que dia da semana era, já a gente tinha tipo oito prazos bastante apertados a cada dia, nossa rotina nunca parou."
"Sweet Tooth" soma-se a uma longa lista de adaptações de histórias em quadrinhos, seja em séries ou como filmes, que tomou o mundo do entretenimento. Às vezes a tradução funciona e é bem sucedida (como "The Boys", "The Umbrella Academy" ou "The Old Guard"); outras se limitam a uma temporada que muitas vezes deixa a trama mutilada ("O Legado de Júpiter" já subiu no telhado, a DC decidiu abortar uma segunda leva de seu "Monstro do Pântano").
Esse novo cenário fez muitos criadores, especialmente os que trabalham em projetos próprios fora da sombra da Marvel ou da DC, desenharem suas histórias desde o começo como um trampolim para mídias fora do papel. "Isso se tornou parte fundamental da indústria dos quadrinhos", reflete Lemire que, além de seus trabalhos autorais, escreveu super-heróis como o Arqueiro Verde, Batman, X-Men e Cavaleiro da Lua para as duas majors.
"Eu acho que os melhores quadrinhos e as melhores adaptações ainda têm origem na vontade de contar uma boa história", continua o artista. "Quando eu desenvolvo novas histórias nunca penso na mídia em que ela será contada. Mas conheço outros criadores que pensam assim, e essas geralmente tendem a parecer com uma linha de montagem."
Lemire não vê problema em conciliar a criatividade com o negócio que se tornou a indústria, mas ainda acredita que os quadrinhos são o lugar em que melhor expressa suas ideias. "Talvez assim essas histórias tenham um potencial maior para existir além dos quadrinhos."
É o que espera Mike Deodato, o brasileiro que co-criou com Jeff Lemire a ficção científica com toques de espada e feitiçaria "Berserker Unbound", e que me disse não ver a hora de os personagens, incluindo um bárbaro na melhor tradição do cimério Conan, ganhar tratamento live action. Jeff Lemire dá risada e solta o recado: "Diz pra ele que estou trabalhando nisso!".
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