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Nada de dálmatas: 'Cruella' é uma fantasia rock 'n' roll no mundo da moda
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"Cruella", que revela a origem de uma das vilãs mais emblemáticas do estúdio do Mickey, consegue ser uma das melhores adaptações de uma animação Disney ao mandar a fidelidade ao desenho às favas. O que é um total espanto, já que essa não era exatamente uma história em demanda. Sem o peso de passar um carbono em "101 Dálmatas", porém, o diretor Craig Gillespie reinventou a personagem e fez um filme com alma roqueira sobre um duelo no mundo da moda.
Adaptações de animações da Disney para o cinema, afinal, resvalam no morde e assopra. Às vezes uma atualização consegue superar o original em encanto e espetáculo, como é o caso de "Mogli, o Menino Lobo". Outras, é uma cópia inerte que nos faz questionar se seu antecessor era tão bom assim, gosto amargo deixado em 2019 por "O Rei Leão".
O ás na manga aqui tem nome e sobrenome: Emma Stone. Mergulhando em seu melhor sotaque britânico, a atriz oscarizada por "La La Land" abraçou a ideia de deixar a fofura do desenho de lado e entrega uma performance complexa e empolgante, coisa rara em um filme que existe basicamente para alimentar e atualizar uma propriedade intelectual - meias com manchas caninas e vestidos góticos light devem estar disponível numa loja perto de você.
Seria fácil (e chato, e óbvio) para a atriz vestir uma peruca preto e branco, colocar uns vestidos extravagantes e caprichar na histeria - como fez Glenn Close no fraquinho "101 Dálmatas" em 1996 e em sua continuação esquecível. Emma, por sua vez, aproveitou o roteiro esperto que não se contenta em refletir uma coleção de greatest hits da personagem e criou uma versão ora trágica, ora emocionante, nunca entediante.
Sim, temos os ajudantes por vezes caricatos, o casaco de pele (relaxa, ele é fake) e, claro, a obsessão pelos dálmatas. O time de roteiristas (foram cinco), porém, usou os fragmentos familiares de Cruella como base para tecer uma história sobre vingança, alienação parental, batalha de egos e apropriação criativa, emoldurando uma jornada de auto conhecimento com direito a reviravoltas, violência (até o limite do padrão Disney, claro) e reinvenção. Tudo bem alinhado com a sensibilidade teen do novo século.
Como história de origem, "Cruella" trilha caminhos já desgastados - e tudo bem. Estranha e excêntrica desde a infância, a personagem começa como Estella, que parte com sua mãe para uma nova vida em Londres. Uma tragédia a deixa órfã, e a vida encontra equilíbrio ao formar uma família disfuncional com os bandidos bonzinhos Horace (Paul Walter Hauser) e Jasper (Joel Fry) em meio à euforia cultural da capital inglesa dos anos 1970.
O sonho em se tornar estilista primeiro a leva a trabalhar em uma loja de departamentos (mas não exatamente com moda), e depois a serviço da poderosa e emocionalmente cega Baronesa (Emma Thompson, devorando o cenário e adorando cada segundo). O trabalho evolui para parceria e logo vira rivalidade, com Estella reinventando-se como Cruella, agora disposta a tudo a deixar sua marca e a descobrir seu lugar no mundo. Transformações, como sabemos, pendem para os dois lados da balança. Achar esse equilíbrio entre heroína trágica e vilã cruel é parte da jornada.
Nada disso, porém, desenvolve-se como um drama existencial e contemplativo. Gillespie deixa o ritmo sempre acelerado e dosa as viradas dramáticas (que não são poucas) na hora certa. Quando "Cruella" ameaça tropeçar, o diretor coloca as duas Emmas em cena, e tudo se ilumina - desde já quero mais filmes com as duas atrizes trocando farpas!
O diretor tem o cuidado em não deixar o drama intenso demais, ou a violência real demais, e sempre conta com bichinhos fofos (menos os dálmatas, que são o capeta) para deixar tudo uma graça. Coadjuvantes como Mark Strong, John McCrea e Kirby Howell-Baptiste (que será a Morte na série "The Sandman") elevam o nível para a estratosfera.
Visualmente, "Cruella" faz um golaço. O figurino, cortesia de Jenny Beavan (que coleciona dez indicações e duas vitórias no Oscar, por "Uma Janela Para o Amor" e "Mad Max: Estrada da Fúria), vai do clássico ao ousado, transformando algumas sequências em extrapolações espertas do universo da moda - um hiper realismo que confere personalidade ao filme. Tudo é pontuado por uma trilha sonora roqueira, por vezes óbvia, sempre sensacional.
Assim, "Cruella" abandona sem pudor a tarefa de ser outra versão live action de um clássico da animação para se assumir como uma fantasia punk rock glam sobre os bastidores bélicos do mundo da moda. É charmoso, descolado, faz bem aos olhos e compensa suas eventuais falhas com um caminhão de fúria pop. Sem falar que é quase impossível um filme que abre e fecha ao som dos Rolling Stones dar errado.
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