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Opinião

Catástrofe no Rio Grande do Sul: com qual deus um ateu deve reclamar?

"Quem é ateu/ e viu milagres como eu...".

Gosto especialmente de um vídeo em que Caetano dedica "Milagres do Povo" à memória de Jorge Amado, morto no mesmo dia daquele show. Escuto a música e penso no título da Copa do Brasil, na sequência de gols improváveis e decisivos feitos pelo São Paulo. Milagres do Morumbi.

Às vezes não acreditar em deus faz uma falta danada. Brinco: é bem mais difícil ser um corredor ateu. Para quem pedir alguma força sobrenatural ali pelos tantos quilômetros, quando as pernas fraquejam, o coração trepida e o corpo só pede por água e descanso? A vontade é perguntar para o outro que se arrasta ao nosso lado se ele tem um deus para emprestar. Coisa rápida, logo devolvo.

Cria da tradição oral e depois levado aos livros, deus é um tipo literário dos mais tradicionais. Aparecia em grupo nas histórias de muitos povos. Depois essa miríade saiu de moda. Passou a ser um cara solitário, todo poderoso. Foi parar em livros que fazem um sucesso danado há milênios. O personagem move clubes de leituras poderosíssimos, capazes de mobilizar bilhões de pessoas pelo mundo.

Deuses vêm e vão. Curto a forma como Neil Gaiman trata disso em "Deuses Americanos". E, como já disse, podem fazer falta para quem os enxerga como importantes personagens de criações primorosas, que atravessam os tempos. Nem incontáveis fiéis deixam as divindades menos ficcionais.

Levo essa descrença em algo superior com leveza. Mas tem vezes que a coisa aperta mesmo.

Em quem buscar afago e serenidade para lidar com a notícia do fim da vida de Antero Greco?

Antero é um exemplo a ser seguido. Sempre soube conciliar credibilidade e leveza. Informação e humor. Mostrou que dá pra ser sério sem ser sisudo. Crítico sem ser escandaloso. Recusou a boçalidade que prolifera na comunicação. Agora um tumor no cérebro faz com que durma um sono do qual não deverá acordar.

Quem é ateu fica meio que sem ter para quem apelar numa hora dessas.

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Penso nisso enquanto acompanho a hecatombe no Rio Grande do Sul. O horror aumenta a cada dia. Não só pela chuva incessante, pela água implacável, mas também pelo avolumar de informações, de histórias narradas, de relatos íntimos a respeito de uma tragédia tão pessoal quanto coletiva.

A Livraria Taverna foi tomada pela água. A editora L&PM, famosa pelos seus livros de bolso a preços mais acessíveis, teve sede e depósito com quase um milhão de exemplares inundados.

Muita gente do mundo do livro está entre as pessoas que precisaram deixar suas casas. Vivem um presente de desnorteio, não sabem como será o futuro. As escritoras Irka Barrios e Julia Dantas escreveram relatos terríveis em suas newsletters (os textos estão aqui e aqui).

Há a razão. O caos é uma consequência das ações e imbecilidades do próprio ser humano, sabemos. Mas é pouco. Não conforta e tampouco traz esperanças, pelo contrário. Numa hora dessas, também faz falta acreditar num deus contra quem possamos praguejar.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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