Luciana Bugni

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Opinião

Abuso na infância: depoimento de Michelle Barros é arma contra silêncio

O cérebro tem uns artifícios curiosos: afastar o pensamento daquilo que se teme como se, por não pensar, fosse mais fácil evitar viver. A apresentadora Michelle Barros deu a volta nesse raciocínio ao, corajosamente, expor o abuso que viveu na infância no programa Chega Mais, do SBT.

"Não seria justo com outras crianças ter atravessado essa dor e permanecer inerte, podendo falar! Por uma situação da vida, eu posso dizer o que sente uma criança quando é vítima de violência sexual. Senti que era obrigação usar minha experiência de sofrimento para alertar as famílias. Espero, de coração, que essa fala auxilie uma criança ao menos!", disse.

Na maternidade, é comum ter dúvidas sobre a hora certa de dizer algumas coisas às crianças. Nunca falei com meu filho usando claramente a palavra abuso, eu pensei vendo as lágrimas de Michelle rolando. Mas já expliquei que ninguém pode tocar ele exceto os pais, quando estão ajudando a tomar banho.

Que se algo desse tipo acontecer, ele precisa me contar. Que é muito importante que o nosso corpo seja respeitado — isso digo desde o fim do aleitamento, quando passei a coibir, de maneira gentil, ataques que tentavam arrancar minha blusa em público para mamar mais. "Mamãe não quer mais ficar com o corpo à mostra agora e você precisa respeitar". "Eu não quero tirar a camisa hoje, é meu corpo e você precisa respeitar", ele diz quando eu insisto que está calor demais no quintal. Parece que entendeu.

Quando Xuxa falou sobre o que sofreu na entrevista no Fantástico e no documentário da Globoplay, sinto que o primeiro impulso é evitar ouvir. Como um homem adulto pode fazer isso com uma criança? Eu me perguntou repelindo a imagem. "Me questiono porque foi comigo e não com minhas irmãs, se foi algo que eu fiz", ela diz meio século após ter sido vítima de um crime. O efeito é perene.

O mais comum em violências assim é um certo incentivo ao silenciamento na vida real. O tema abuso de crianças é tão difícil de digerir que a gente tenta mesmo fugir do assunto. No cinema também. Em "Sobre Meninos e Lobos", os três amigos que brincavam próximos a uma floresta nunca mais conversaram sobre o que aconteceu com um deles, que foi sequestrado e abusado em uma cabana por vários dias.

As consequências na vida adulta são terríveis. No francês "A Silence", uma mãe vive tentando abafar a suspeita de que o marido abusa do filho — não se sabe se por conivência ou por despreparo psicológico para lidar com os fatos.

Na série "O Lado Sombrio da TV Infantil", astros infantis da Nickelodeon revelam violências após anos de silêncio — e há ainda uma polêmica de que se sentiram pior ao fazê-lo e acusam a produção de explorar sua dor. É como se houvesse uma premissa de que se você contar o que viveu, mais gente pode culpá-lo. E é comum que qualquer vítima de violência já faça isso sozinha, como confirmou Xuxa.

É nessa convicção que está a força da cena clássica de "Gênio Indomável", em que Sean (Robbin Willians) tenta explicar para Will (Matt Damon) que a culpa do abuso não é dele. "Eu sei", diz o jovem, com semblante firme, enquanto o psicólogo reafirma: "Não é sua culpa". No fim da cena, Will está chorando e pedindo desculpas. Ele não sabe que a culpa não é dele. Enquanto a gente não repetir isso várias vezes, ninguém vai saber.

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Cuidar da saúde mental com profissionais graduados é uma importante maneira de reduzir os danos de crimes como esse.

Quando Michelle coloca o assunto e expõe as lágrimas na TV aberta, a gente levanta o tapete e fala sobre o assunto também. Por mais indigesto que seja, ainda é esse o melhor jeito de evitar aquilo que mais queremos fingir que não existe.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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