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Luciana Bugni

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

59 anos do Golpe: sem 'Apesar de Você', Chico Buarque apaga ex-presidente

Chico Buarque no palco: é como se o governo anterior pudesse ser apagado - Divulgação
Chico Buarque no palco: é como se o governo anterior pudesse ser apagado Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

01/04/2023 08h53

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Havia uma expectativa no ar para o show de Chico Buarque nesta sexta (31), em São Paulo. No aniversário de 59 anos do golpe militar de 1964, o público comentava: o que será que ele vai falar sobre o assunto no palco? Vai xingar o ex-presidente?

Como o cantor e compositor que tanto versou contra a ditadura vai se vingar dos últimos quatro anos em uma data simbólica como essa?

Surpresa: durante o show de quase duas horas, nenhuma menção aos militares. Ninguém entoou suas canções explicitamente políticas. Nada. Chico usou a tática militar para tratar o assunto: o apagamento. Sem a violência do golpe e com muito mais poesia. Você trocaria "Cálice" por "Choro Bandido"? Claro que sim, onde eu assino?

Que tal um samba?

O show parece o momento seguinte de "Meu Caro Amigo", música de 1976 ainda sob a escuridão da ditadura: ali, a gente ia sambando que também sem um batuque ninguém segura esse rojão. Hoje, o set list é uma seleção pós-tempestade. "Tá bom, foi complicado e tal. Mas agora vamos virar essa página, vamos sorrir um pouco, que tal um samba para espantar o tempo feio e remediar o estrago?", nos diz Chico. O público aceita e bate palmas, sorridente. Ufa.

Seria ingênuo dizer que a eleição de Lula apaga o ódio que colocou o presidente anterior no poder e quase o elegeu novamente em 2022. Há um movimento grande de metade das pessoas do país que valida inclusive o golpe que ocorreu há 59 anos. Mas Chico passa por cima do pesadelo, como um trago, um desafogo, um devaneio. Traz Mônica Salmaso para hipnotizar. Deita na cama da amada e desperta poeta (há décadas).

A tática do apagamento de Chico funciona, depois de tanta mutreta, cascata e derrota. O público vibra quando ele diz "depois de tanta demência" — parece ser a única referência clara ao governo anterior. No verso "e uma dor filha da puta, que tal?" ele está falando da gente mesmo. Puxar duas horas de samba dá um alívio, sim. Opa se dá.

Alegra o dia, zera o jogo, coração pegando fogo e a cabeça fria, ele explica. Não tem jeito melhor de se vingar, tem? O samba com categoria e calma permeia o show todo, com a elegância de Chico Buarque. Esse, sim, pode ser exilado, pode ser silenciado, pode ser mal interpretado... mas é eterno.

É importante saber a história do país e os descalabros da ditadura para não permitir que isso volte a acontecer. Mas, se por um dia, a gente pudesse fingir que pelo menos os últimos quatro anos nunca tivessem existido... do que estamos falando mesmo?

Na manhã seguinte à catarse, ainda nutrida dos versos de Chico, me dou conta que amanhã realmente foi outro dia. Onde será que se esconderam da enorme euforia?, eu chego a me perguntar. Deixa para lá. Hoje é dia do regozijo de achar a rima que completa o estribilho.

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