Joyce Pascowitch

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Opinião

O mundo dos bicheiros do doc 'Vale o Escrito' me fez ficar transtornada

Sinceramente não sei nem por onde começar, depois que assisti do início ao fim ao documentário "Vale o Escrito", na Globoplay. A realidade é tão forte que às vezes dá vontade de fechar os olhos ou de colocar óculos escuros. O Rio de Janeiro nu e cru, numa visão nada agradável.

Sim, todo mundo sabe sobre o jogo do bicho, sobre os barões que comandam, sobre os crimes envolvidos, sobre os personagens bem curiosos (para se dizer no mínimo). Assisti a tudo, do início ao fim, nessa intensidade absurda, com essa verdade escrachada — é bom lembrar que não se trata de uma obra de ficção e, sim, um documentário. Enfim, é muita realidade de uma tacada só.

Começamos pelos personagens que mais chamam a atenção: claro que Shanna, a filha do banqueiro Maninho, da família Garcia, uma mulher extremamente forte, decidida, vaidosa, claro, que aparentemente não tem medo de ninguém e de nada, circulando por esse mundo com a mesma impunidade que os pares de seu pai e avô, Miro Garcia, referências nesse universo. Ela claramente puxou ao pai, com os olhos bem arregalados e bem diferente da irmã gêmea, que não quer aparecer, que fala manso e que puxou a mãe, outra personagem bem controversa, extremamente passiva e aparentemente confortável nesse mundo.

Além de Shanna, chamaram minha atenção principalmente o carnavalesco Milton Cunha, uma estrela, que domina a linguagem, o jogo de cena, as câmeras e o mundo das escolas de samba e do bicho com uma lucidez admirável. Carisma, pensamento articulado, fala precisa não só nesse documentário concebido pela equipe de Pedro Bial, mas em todas as aparições dele na TV, dentro ou fora do Carnaval. Ponto pra Milton Cunha, ele merece.

Outro personagem que me chamou muito a atenção foi um dos vários delegados de polícia que dão depoimentos: Vinicius Jorge, grisalho, articulado também e muito falante, que explica muito bem com lucidez e sarcasmo como é o Rio de Janeiro, prensado entre o mar e o morro, onde treinam na mesma academia mocinhos e bandidos, popozudas e futuros maridos. Todos se cumprimentam, se entendem e às vezes se misturam. Isso é civilidade? Não exatamente: isso é Rio de Janeiro. Esse delegado deu uma lição de sociologia e antropologia que mostra e tenta explicar esse retrato aparentemente absurdo dessa cidade tão controversa e tão cheia de problemas e, ao mesmo tempo, tão cheia de charme e sedução.

São muitos os bicheiros, ou melhor, os contraventores, como eles gostam de ser chamados, que surgem a cada capítulo, personagens fascinantes desse mundo que a gente poderia chamar de obsceno. Algumas mulheres aparecem aqui e ali, em papel secundário, salvo ela, Shanna, guerreira. Lembrei que quando comecei a assinar a coluna na página 2 da Ilustrada, na Folha de S.Paulo, um dos personagens que mais atraía a minha atenção era Maninho, uma espécie de "menino do Rio" proibidão - e não aquele do sol, do mar, do surf. Confesso que fiquei fascinada por esse cara bem bonito, charmoso, cheio de pose e poder, em cima de uma moto potente, mandando e desmandando nas quebradas de lá.

Claro que ele foi assassinado por algum rival assim como tantos outros personagens desse excelente documentário: eles morriam feitos figos podres caindo das árvores, um atrás do outro. Sim, a história é fascinante e não dá pra desgrudar. Não assisti logo que foi lançada e sim agora, virou assunto em várias rodas de amigos. Fiquei interessada e grudada na tela da TV. Transtornada. A figura da gêmea rompida com a irmã e que dá socos e chutes tão fortes em seus inimigos que manda eles pro hospital, confesso que fiquei fascinada com tudo isso.

A questão feminina está presente, uma celebração às mulheres fortes, que fizeram a diferença nesse submundo — entre elas a segunda mulher de Maninho e a mulher do Capitão Adriano, assassinado na Bahia. Tudo bem que Shanna é extremamente polêmica, nesse mundo do dedo por dedo, mão por mão, braço por braço e por aí vai até que a morte os separe.

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Shanna chora várias vezes quando entrevistada, sempre numa cocheira — ela é cavaleira desde criança, salta, participa de torneios, é campeã. Convive nesse cenário equestre com outros tantos tão endinheirados quanto ela, embora com riquezas provenientes de outras fontes. Mas quem há de questionar? Shanna parece inteira na sua busca por uma vida significativa. E quem vai se atrever a questionar ela?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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