Flavia Guerra

Flavia Guerra

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Com filme que retrata tensão do Irã, cineasta foragido é favorito em Cannes

Demorou, mas o grande favorito, praticamente unânime, à Palma de Ouro 2024 chegou no último dia do festival e traz a tensão do Irã contemporâneo à Riviera Francesa. "The Seed of the Sacred Fig" (A Semente do Figo Sagrado) trouxe também seu diretor, o iraniano Mohammad Rasoulof, que fugiu de seu país há cerca de dez dias, pouco antes do festival começar, em 14 de maio.

Condenado à pena de oito anos de prisão pela Justiça do Irã, o cineasta está supostamente refugiado na Alemanha e sua presença já era ventilada ao longo dos dias de festival. Rasoulof não só veio, como foi aplaudido por 15 minutos ao final da première mundial do filme na tarde desta sexta (24), em Cannes.

Obrigada infinitamente a todos. Eu não sei como reagir a tanto encorajamento. Eu agradeço ao Thierry, eu agradeço ao festival. Eu estou muito feliz de estar aqui, eu penso em todos que permitiram que este filme fosse realizado, no que estão aqui, mas também nos que foram impedidos de estar aqui. Eu penso em Missagh Zareh e Soheila Golestani, os atores principais, eu penso no meu diretor de fotografia, no meu diretor de som, meu diretor de arte, meu figurinista, eles são numerosos para que eu cite todos", declarou o cineasta após a exibição. Mohammad Rasoulof

Rasoulof, que soltou um comunicado afirmando ter fugido do Irã em uma viagem perigosa e exaustiva, trata justamente em seu novo filme do cenário em convulsão social em que o Irã se encontra atualmente. Na trama, Iman (Missagh Zareh), é um "servidor público" do sistema de Justiça iraniano que é promovido a inspetor, cargo impopular e polêmico, e que se prepara para se tornar juiz, seu cargo sonhado.

Só que ao subir de cargo ele também passa a ter que assinar documentos que pedem sentenças de morte para prisioneiros sem sequer ler os processos.

Em paralelo, a juventude iraniana, principalmente as mulheres, protestam nas ruas contra as injustiças e contra a bárbara morte da jovem Jina Mahsa Amini, que foi presa e espancada por não usar corretamente o hijab, e ele se vê cada vez mais pressionado a encarar mais de cem processos por dia.

Sua mulher, conservadora, religiosa e obediente, faz de tudo para manter a paz em casa e controlar os questionamentos das duas filhas adolescentes do casal, que são conectadas às redes sociais e que não compram a versão vendida nos noticiários oficiais sobre os motivos dos protestos que varrem as ruas de Teerã.

Este cenário é familiar a Rasoulof, que foi preso na onda dos protestos de 2022 e afirmou que é "fortemente contra a decisão recente, injusta e que o obrigou a se exilar". Não por acaso, foi na prisão que a ideia para escrever o roteiro de "The Seed of the Sacred Fig" surgiu.

"A ideia inicial desse projeto me veio na prisão. Eu fui preso e tinha como meu companheiro um político que fez greve de fome e que ficou em uma situação muito grave até o ponto que as autoridades penitenciárias vieram para examiná-lo. E um dos funcionários da prisão tirou uma caneta do bolso meio secretamente e me deu de presente", contou o cineasta.

"Eu achei isso meio suspeito, mas o funcionário me disse: 'Todo dia quando eu passo da porta pra fora da prisão, eu me pergunto em que dia eu vou me enforcar. Isso porque meus filhos me perguntam como foi meu dia, 'o que você fez hoje.' Assim nasceu a ideia deste filme", começou ele.

Continua após a publicidade

Para Rasoulof, o projeto tinha uma chance muito pequena de dar certo e por isso agradeceu ao público. "Era um projeto ambicioso que tinha uma chance em dez, mas hoje ele existe e estou profundamente aliviado que este filme tenha sido feito", concluiu o diretor, que do alto da escadaria do Palais des Festivals de Cannes empunhou as fotos dos Missagh Zareh e Soheila Golestani, que vivem o casal principal na trama e que não tiveram autorização para deixar o país.

A propósito, segundo o diretor, o elenco e outros membros da equipe do filme têm sido interrogados pela Justiça iraniana, que afirma que o cineasta atentou contra a segurança nacional ao não pedir autorização para realizar seus filmes e que, portanto, cometeu um crime.

Agradeço a cada uma dessas pessoas, agradeço a todos que permitiram que este filme exista. Agradeço a vocês que viram um filme longo. Espero de todo meu coração que todo esse aparato repressivo e da Ditadura desapareça em breve do Irã. Eu evoquei os ausentes e agradeço aos presentes, que se deram o trabalho de vir até aqui e a todos que trabalharam neste filme. Sem vocês, ele não existiria, um bando de malucos que se lançaram nessa aventura e que finalmente a assistiram aqui.

Rasoulof tem uma cinematografia calcada na realidade e nos temas duros e contraditórios de seu país. Em 2020, venceu o Festival de Berlim com o contundente "Não Há Mal Algum", que investiga os efeitos da pena de morte em cada um dos afetados pela prática: o oficial que é responsável pela execução, a família de quem é condenado à morte e a sociedade que se omite.

Em Cannes, o diretor esteve em 2017 com o longa "Lerd", vencedor da mostra paralela "Un Certain Regard"(Um Certo Olhar). Se vencer Cannes neste ano, entra para o seleto grupo de cineastas que têm uma Palma e um Urso de Ouro no currículo.

Greta Gerwig, presidente do júri, e sua equipe têm uma tarefa árdua pela frente. Afinal, outros bons candidatos surgiram ao longo do evento, como o inglês "Bird", de Andrea Arnold, "Emilia Perez", de Jacques Audiard, "The Substance", de Coralie Fargeat, e "Anora", de Sean Baker, além do brasileiro "Motel Destino", que dividiu público e crítica, mas tem sido bem avaliado no cenário geral.

O grande ponto de "The Seed of The Sacred Fig" é conseguir, por meio da história de uma família que vê o conflito de gerações entre os pais conservadores e as filhas adolescentes, também simbolizar a luta de gerações entre quem quer que o Irã se mantenha atrelado atavicamente à visão de mundo conservadora de um governo teocrático e quem, quer que o país se insira em um contexto mundial em que a mulher ganhou mais liberdade, poder e direitos.

A dupla de irmãs que, ao descobrir o que o pai faz, rebelam-se e decidem, em casa, enfrentar o regime que está também sendo questionado nas ruas, é genial. Com narrativa que começa como um drama e passa para seu terceiro ato para uma espécie de thriller, em que a tensão em família é a tensão de todo um país, "The Seed of the Sacred Fig" é um dos filmes mais potentes e corajosos do festival e não deve sair sem prêmios da cerimônia da entrega das Palmas, que ocorre na noite deste sábado na cidade francesa.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

Só para assinantes