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Flavia Guerra

REPORTAGEM

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Aborto e ato de rebeldia: a força da mulher para virar o jogo em 'Levante'

Cannes: "Levante" concorre na Semana da Crítica - Wilssa Esser
Cannes: 'Levante' concorre na Semana da Crítica Imagem: Wilssa Esser

Colunista do UOL

25/05/2023 04h00

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Uma jovem mulher intensa e forte, que se rebela contra a sociedade que não a permite ter liberdade sobre seu próprio corpo e sua vida. Assim, a diretora Lillah Halla falou de "Levante" diante de uma plateia que lotou a première mundial do filme no Festival de Cannes.

O longa concorre na Semana da Crítica, prestigiada mostra paralela do festival, e trata com rara honestidade o tema do direito ao aborto no Brasil.

Sempre atenta aos jovens talentos do cinema que apostam em narrativas e temas ousados, a Semana da Crítica costuma revelar talentos que vão se tornar nomes importantes do cinema internacional. Lillah Halla, que já dirigiu curtas premiados como "Menarca", sinaliza que seu estilo contundente de contar histórias de personagens femininas contemporâneas evoluiu e se amplia.

"Este projeto existe muito antes do curta que fui fazendo antes de conseguir realizar o longa. Mas eles se encontram em alguns lugares. "Levante" tem abordagem muito diferente, pois é muito realista, e 'Menarca' é um filme de gênero. Sou eu vivendo através deles", comentou Lillah em entrevista a Splash.

Drama realista

Se em "Menarca" Lillah trouxe um filme de gênero (o fantástico) para abordar a violência contra a mulher ainda muito jovem (infelizmente, tão comum no Brasil), em "Levante" o tom é de drama realista, que retrata com respeito e apuro uma São Paulo periférica em que a violência social não é o maior mal.

Fugindo dos clichês quando se filma a periferia, as relações humanas, as casas, escolas, ruas e relações humanas traduzem uma população que sonha, que se cuida, que se ama e está em busca de seus sonhos, apesar de tantas adversidades (que se entendem sem obviedade, mas principalmente nas sutilezas dos diálogos bem construídos, nas entrelinhas).

No entanto, alguns momentos mais diretos se fazem necessários em um país hipócrita quando este assunto se faz presente: Em determinada cena de "Levante", uma jovem indaga: "Quem pode faz e paga R$ 8.500. E quem não pode pagar faz o quê?"

LEVANTE - Wilssa Esser - Wilssa Esser
Cannes: 'Levante' trata o tema do direito ao aborto no Brasil.
Imagem: Wilssa Esser

A resposta não vem e é o público quem deve tentar responder à questão. É curioso observar como, quando o assunto é a gravidez indesejada e a possível interrupção desta gravidez, o tabu no Brasil ainda seja tão grande que a palavra "aborto" seja quase que naturalmente evitada, em uma tentativa, às vezes inconsciente, às vezes estratégica, de não atrelar debate tão importante a todo preconceito e julgamento que a palavra em si carrega.

É esta carga imensa que uma jovem como Sofia, a protagonista de "Levante", também carrega, que pesa como impulsor dramático no filme. Quem vive Sofia é Ayomi Domenica Dias (que muitas vezes é lembrada como filha de Mano Brown, mas que revela que tem talento de sobra para construir uma bela carreira).

Ela está sempre cercada de uma trupe que funciona como uma grande família contemporânea, em que o feminino é uma força propulsora, sem negar o masculino, mas que celebra mulheres de diferentes corpos, saberes, orientações de gênero, sexualidade e estilos. Quem dá vida, corpo e alegria a esta família são nomes como Loro Bardot, Gláucia Vandevel, Onna Silva, Lorre Motta, Heloísa Pires, Karina Rie Ishida, Helô Campelo, entre outros.

Laços e afetos

"É um filme sobre a importância dos espaços seguros, da família e dos laços que a gente escolhe para a gente. É um filme sobre as corpas e a possibilidade dessas corpas existirem e a necessidade dessas corpas se expressarem. É um ato de rebeldia necessário. Isso é uma das coisas mais importantes deste filme. É sobre a importância política da alegria e da organização coletiva para atravessar momentos difíceis", afirmou Lillah sobre "Levante".

A trama

Sofia é uma jovem promissora jogadora de vôlei. Ela e as amigas de time fazem parte do pequeno C. Leste (Capão Leste) um time de destaque. Um dia, surge a oportunidade de uma bolsa de estudos que vai levar Sofia para o Chile e em direção à conquista de seus sonhos.

Garota de classe média baixa, que perdeu a mãe uruguaia e é criada por um dedicado pai (Rômulo Braga), Sofia tem na treinadora do time (vivida por Grace Passô) apoio e orientação. Tudo vai bem até que ela descobre a gravidez, fruto de uma relação casual com um rapaz com quem ela não mantém nenhuma relação afetiva e nem de amizade. "A criança não tem pai", diz Sofia em uma consulta em uma clínica que encontrou na internet. A tal clínica parece querer ajudar as garotas que, de um dia para o outro, tornam-se criminosas (pelo menos diante da moral e da religiosidade imperantes no Brasil) somente pelo fato de cogitar não levar a gravidez adiante.

O que parecia um drama jovem começa a ganhar tensão, até mesmo contornos de thriller. À medida que o tempo vai passando e as opções de Sofia se reduzindo, a perseguição dos moralistas de plantão vai se tornando de fato ameaçadora. "Levante" joga na tela e na cara do público o horror que é ser mulher e estar na situação de Sofia.

Para além do crime em si, não há orientação psicológica, não há acolhimento suficiente de órgãos oficiais (hospitais, clínicas para a mulher, delegacia da mulher etc), não há nem mesmo preparo dos professores, orientadores, pais. O que há é uma falta de habilidade para ajuda mesmo quando se quer (como é o caso do pai de Sofia e até mesmo da treinadora) ou grande silêncio conivente, uma grande angústia e as jovens amigas que, desesperadas, tentam encontrar uma solução rápida para ajudar a amiga a seguir e não desistir de seus sonhos.

Em contrapartida a todo este horror cotidiano, há esta rede de apoio de que fala a diretora, encarnada com talento e alegria pelas amigas que cercam Sofia. Se a hipocrisia é o terror cotidiano, a alegria e a liberdade das "corpas" são a prova dos nove em um Brasil que, mesmo a contragosto de muitos, avança.

Coprodução entre as empresas Arissas (Brasil), Manjericão Filmes (Brasil), In Vivo Films (França) e Cimarrón Cine (Uruguai), sinaliza uma nova geração do audiovisual brasileiro que busca a internacionalização não só para fortalecer a produção e a chance de presença em festivais, mas também para ampliar sua narrativa e alcance com o público internacional.