Chicago no prato e no pão

Comidas da série "O Urso" mostram por que a cidade deve ser seu próximo destino gastronômico

Juliana Simon* Editora do UOL iStock/Divulgação Star+

Ninguém conhecia Carmy Berzatto (Jeremy Allen White) e Sydney Adamu (Ayo Edebiri) até junho de 2022 e em muitos lugares fora de Chicago, cidade-cenário da série "O Urso" ("The Bear", Star+), o italian beef sandwich era outro mero desconhecido.

A trama — muito mais psicológica que propriamente gastronômica — e as várias premiações que elevaram a série a fenômeno, porém, elevaram esse lanche típico da terceira maior cidade dos Estados Unidos a um fetiche mundial.

Desde então, são muitos os turistas que chegam à procura do "sanduíche do 'The Bear'" e que desenham as andanças atrás das referências da série, como o restaurante que inspirou o fictício "Original Beef of Chicagoland" da primeira temporada e a infinidade de referências da segunda parte, lançada em 2023.

Não se preocupe se você não assistiu à série: este texto não revelará nenhum spoiler sobre a história em si ou sobre os riquíssimos personagens.

Mas aqui vai um incentivo aos apaixonados por comida para começar a maratona ou terminar os episódios faltantes: o sanduíche é só um dos itens gastronômicos que fazem de Chicago um dos lugares mais interessantes e variados das iguarias de rua à alta gastronomia estrelada.

O italian beef sandwich é, sim, bem típico de Chicago e sua história se confunde com a de muitas outras cidades de imigrantes pelo mundo (São Paulo entre elas).

Nos anos 1920, os muitos italianos que "faziam a América" em busca de uma vida melhor só tinham renda para comprar carnes menos nobres e o jeito era investir em tempero e "sustança", como nós brasileiros conhecemos bem.

Mestres em transformar necessidade em arte culinária, os imigrantes majoritariamente provenientes do sul da Itália mergulhavam peças bovinas em uma combinação de pimenta, pimentão, alho, aipo, orégano, cenoura, cebola e outros segredinhos. A carne era, então, fatiada e recheava — sem miséria e com muito caldo — pães italianos, mais rígidos e que, claro, segurassem tanta potência e suculência.

Hoje, são vários os restaurantes, lanchonetes e redes que oferecem o lanche de norte a sul de Chicago.

Uma das marcas, porém, foi a inspiração para Christopher Storer, criador da série nascido no subúrbio de Chicago.

Se quiser ter um "cheiro" de "The Bear", vá ao Mr Beef e bata um papinho com Christopher Zucchero, filho de Joe, comandante do negócio desde 1979, falecido em março de 2023 e inspiração para Uncle Jimmy, outro personagem inesquecível da série.

Em entrevista a Nossa, Chris não esconde o orgulho em ver seu estabelecimento e seu principal produto elevados a ícones em uma série de sucesso.

A receita segue muito do que se via nos chamados peanut weddings da comunidade italiana, onde comidinhas baratas eram o banquete de casamentos organizados nos porões dos cortiços e igrejas. "Evoluiu um pouco ao longo dos anos, mas não muito", conta.

Não posso dizer que o nosso é o melhor de Chicago, mas eu sei que é bem bom. Tenho muito orgulho de estar no que hoje é um grupo bem pequeno de pessoas que ainda fazem o sanduíche do jeito mais tradicional"

Amigo pessoal do xará Storer, Zucchero faz coro com chefs e cozinheiros do mundo todo ao ver na série um retrato muito fiel da rotina de um restaurante, em todas as dores e belezas do ofício.

E vai além: "É um verdadeiro tributo à cidade e à nossa cena gastronômica".

O Mr. Beef virou um dos centros de peregrinação dos fãs da série, como Chris confirma, e ele garante que adora encontrar e bater um papo com quem aparece por lá nem que seja para tirar uma foto.

Ficou curioso? Na próxima ida a Chicago, vá até o número 666 da N. Orleans Street.

Ainda que o sanduíche de carne tenha virado um símbolo da série já na primeira temporada, os episódios abordam de forma muito mais discreta outras comidas muito típicas da cidade.

Este é o caso, por exemplo, do cachorro-quente de Chicago, também chamado de Chicago Red Hot, que disputa corações e estômagos com outros hot-dogs icônicos dos Estados Unidos, como o "rival" de Nova York.

A versão "chicagoan" é composta por salsicha kasher, à base de carne bovina, acompanhada de picles de pepino, tomate, cebola e mostarda, num pão coberto por sementes de papoula.

Equivalente ao nosso sanduíche de pernil de estádios de futebol, não há nada mais popular numa boa partida de beisebol, seja da torcida de elite Cubs ao "time do povo" White Sox.

Apesar de muito popular (talvez mais até que o italian beef sandwich), o Chicago-style hot dog dá as caras na série muito discretamente e dizendo justamente o que é terminantemente proibido acrescentar no lanche.

No quarto episódio da primeira temporada, que se passa em uma festa infantil, o Cousin Richie Jerimovich questiona:

Que tipo de idiota coloca catchup no cachorro-quente?"

O recado está dado.

Outra comidinha campeã de Chicago também aparece discretíssima e totalmente reformulada.

No sétimo episódio da segunda temporada, quando Richie "ataca de garçom" no fictício melhor restaurante do mundo (com cenas gravadas no Ever), um dos clientes lamenta estar em seu último dia na cidade e não ter provado a "deep dish".

Trata-se da pizza típica da cidade, que leva esse nome por ser um verdadeiro "prato fundo" de queijo e molho, se assemelhando muito a uma torta.

Criada nos anos 1940 e com origem disputadíssima, a iguaria divide paixões pela cidade. Por lá, a escolha da sua pizza do coração é equivalente à escolha de um time esportivo e o Fla-Flu principal é entre as redes Lou Malnati's e Giordano's.

Correndo por fora, outros nomes importantes. A escolha de Richie para agradar o cliente é uma tradicionalíssima da Pequod's, que nas mãos do chef de cozinha vira um agrado para nenhum "Chef's Table" botar defeito.

Cortada em pequenos discos e guarnecida de manjericão, azeite e mais toques do chef, a tradicional "deep dish pizza" ganha ares de alta gastronomia.

Na segunda temporada, Sydney defende seu desejo por uma estrela Michelin, enquanto Carmy conta que a honra também traz outro nível de pressão. Se na primeira temporada, chefs e cozinheiros se identificaram com o dia a dia de qualquer cozinha, na segunda, é de excelência que estamos falando.

Honrarias e referências estreladas não passam despercebidas ao espectador. Da Copenhagen e o famigerado Noma, ao já citado Ever — um duas estrelas que virou cenário para um ficcional três estrelas e na lista dos restaurantes "a conhecer" da 50 Best Restaurants.

Se a cidade está ausente entre os mais-mais da lista dos 50 melhores do mundo em 2023, o Guia Michelin reconhece 22 estabelecimentos estrelados — dois com a honraria máxima de três estrelas: o Alinea e o novato Smyth.

Ao lado do Ever, com duas estrelas, estão Moody Tongue e Oriole, West Loop. Com uma estrela em 2023 estão Atelier, Indienne, BOKA, EL Ideas, Elske, Esmé, Galit, Kasama, Mako, Next, Omakase Yume, Porto, Schwa, Sepia, Temporis e Topolobampo.

Na última lista, dois chamam atenção.

O Sepia, visitado pela reportagem, brilha não só por seu menu sazonal, inventivo e desenhado por um dos grandes nomes da cozinha norte-americana, o chef Andrew Zimmerman, mas também por uma carta de drinques emocionante com uma versão inesquecível de Bloody Mary.

E o Kasama, cenário da cozinha d'O Urso na série e citado em alto e bom som em um dos episódios mais representativos da trama para quem está ligadíssimo nos prazeres do comer bem.

No terceiro episódio da segunda temporada ("Sundae"), é pelo Kasama, uma padaria filipina, que Sydney começa uma jornada de pesquisas e delícias. Seguido pelo moderno Avec, cujo dono Donnie Madia dá conselhos para a jovem chef do "The Bear".

Surgem ainda a pizza de pepperoni de Pizza Lobo, o moderno da nova cozinha americana Giant, o chinês Lao Peng You e, finalmente, a sorveteria Margie's Candies.

Sim, Chicago é uma festa da gastronomia em todas as suas esferas, camadas, preços e reconhecimentos.

Além das fortes referências culinárias de ondas imigrantes dos séculos 19 e 20, como italianos, alemães, poloneses e ucranianos, a cidade ainda recebeu um histórico fluxo de afrodescendentes do sul do país entre 1916 e 1970 — que impactou na formação cultural como um todo. Da comida à música, obviamente. Lembrai de BB King e seu Blues Chicago, afinal.

A essa panela, acrescenta-se a potente imigração mexicana, iniciada nos anos 1910 e hoje tão representativa que caracteriza enormes redutos pela cidade.

Entre eles, o bairro de Pilsen (batizado pela imigração anterior, a de tchecos), que reúne desde casas ao estilo tex-mex ao que existe de mais tradicional no país ao sul, como tamales quentinhos e apimentados feitos na hora.

Indispensável na história da arquitetura e da música, Chicago também tem seus pés fincados no roteiro dos amantes da boa cozinha. "The Bear" só ajudou a levar para o mundo o universo saboroso ao redor do Lago Michigan.

*A jornalista viajou a convite do Choose Chicago

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