Nem simples, nem deselegantes: vinhos doces ganham espaço nas vinícolas

Vinho doce ou vinho seco? A pergunta costuma dividir tribos em discussões parecidas com a do coentro na moqueca ou a das passas no arroz de Natal. Bebedores que se consideram mais 'sérios' vão dizer que o vinho seco é mais nobre, elegante. E olhar feio para quem gosta de uma bebida docinha na taça.

A briga vai além do gosto, envolve questões de classe e tem o vinho como marcador de diferenciação social. Os vinhos, secos ou adocicados, feitos com uvas vitiviníferas europeias (Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Malbec etc.) carregam uma aura de sofisticação.

No Brasil, boa parte do vinho consumido é elaborado com uvas americanas ou híbridas (cruzamento de americanas com variedades europeias). E boa parte desse vinho - a popular bebida "de garrafão" - tem níveis mais elevados de dulçor, alcançado com a adição de açúcar.

Pérgola, o rótulo mais vendido no Brasil, feito com uvas Niágara, Bordô e Isabel, tem mais de 25 gramas de açúcar por litro. De acordo com a legislação brasileira, esse teor encaixa o produto na categoria "suave", enquanto o vinho "seco" não pode ultrapassar 4 gramas. A vinícola Campestre, do Rio Grande do Sul, produz cerca de 35 milhões de litros de Pérgola anualmente.

É o gosto do brasileiro, nascemos do açúcar, temos esse perfil, esse DNA de povo e de nação.
Adiu Bastos, sommelier

"Acontece que os profissionais do vinho falham em sua comunicação com esse público, por preconceito ou desatenção. O consumidor de vinho suave com certeza pode se tornar um fã de Vinho do Porto, de Rieslings adocicados e de uma gama maravilhosa de vinhos licorosos feitos no mundo e no Brasil", completa o sommelier.

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Imagem: Divulgação

Como são feitos os vinhos doces

Para entender o que é um vinho doce, primeiro é preciso saber o que é o seco. As leveduras que fermentam o mosto das uvas são microorganismos gulosos, doidos por coisas doces, tal qual os brasileiros. Elas devoram o açúcar das frutas durante a fermentação e o transformam em álcool. No final do processo, sobra pouco dulçor (o que, em linguagem técnica, chama-se açúcar residual). Esse é o vinho seco.

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Há uma série de técnicas de elaboração de vinhos doces ou licorosos e, em boa parte delas, o produtor "tapeia" as leveduras. Na verdade, ele as mata, para que sobre bastante açúcar. Outros estilos são feitos com uvas tão, mas tão cheias de açúcar (muito maduras, passas, atacadas por fungos) que as leveduras não dão conta de comer tanto doce.

Alguns dos processos são:

  • Vinhos fortificados - um dos métodos mais difundidos no mundo é a adição de aguardente vínica antes que a fermentação se complete. Como as leveduras não sobrevivem a um ambiente de grau alcoólico maior do que 15%, vão para o beleléu e sobra muito açúcar residual. Porto, Madeira e Moscatel de Setúbal (Portugal), Marsala (Itália), Banyuls (França) são alguns exemplos famosos.
  • Colheita tardia - são feitos com uvas colhidas de um a dois meses depois de sua maturação. Quase passas, as frutas concentram muito açúcar e originam vinhos bastante famosos ao redor do mundo. São comuns na Alemanha, na França, nos Estados Unidos, na Austrália, na Grécia. Mas é possível encontrar vinhos de colheita tardia - ou late harvest - em quase todas as regiões produtoras do planeta, incluindo o Brasil.
  • Podridão nobre - o fungo Botrytis cinerea ataca as uvas e causa sua desidratação, concentrando açúcar na fruta. Ele se desenvolve em condições bem particulares e também leva um conjunto especial de sabores ao vinho. As uvas botritizadas devem ser colhidas uma a uma, pois nem sempre todo o cacho é atacado pelo nobre fungo. Por isso, são vinhos raros e bastante caros, como o francês Sauternes, o alemão Beerenauslese ou o húnagro Tokaji.
  • Passificação - nesse processo, as uvas são colhidas maduras e passificadas - naturalmente ou em estufas - às vezes por mais de 100 dias, dependendo das condições climáticas e da intenção do produtor. Os vinhos de appassimento são muito famosos na Itália, que produz clássicos como Passito de Panteleria (Sicília) e Recioto della Valpolicella (Vêneto).
  • Congelamento - conhecido como icewine no Canadá e como eiswein na Alemanha e na Áustria, é feito com uvas colhidas em temperaturas extremamente baixas (cerca de 10 ºC negativos). São prensadas enquanto ainda estão congeladas e isso faz com que os cristais de gelo, contendo boa parte da água da fruta, sejam separados. Sobra, para a vinificação, um sumo muito concentrado e doce.
  • Adição de açúcar - embora o método não seja permitido em muitas regiões produtoras, é usado em algumas denominações e estilos. Espumantes em todos os cantos do mundo, incluindo Champagne, recebem açúcar depois da segunda fermentação, para equilibrar o sabor e muitas vezes obter uma bebida francamente doce.
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Quando um espumante tem a expressão "nature" no rótulo, quer dizer que não recebeu açúcar adicional e é bem seco. "Extra brut" e "brut" indicam que eles ainda mantêm certa secura. A partir de "demi-sec", o espumante já pode ser considerado docinho, até chegar ao "doux", para Champagnes com mais de 50 g de açúcar por litro.

Há outros métodos para elaborar espumantes doces, como o Asti, típico da Itália. O processo consiste em resfriar o mosto durante a primeira fermentação, interrompendo-a e mantendo o dulçor do líquido. Vários produtores brasileiros são adeptos do Asti, sobretudo quando trabalham com uvas da família Moscatel.

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Vinho doce e vinho suave: tem diferença?

Todos esses métodos diferenciam o vinho doce do vinho suave, pois em quase todos (com exceção dos espumantes) foi utilizado o açúcar da própria fruta - não houve adição de um agente de dulçor, como no caso do vinho de garrafão.

Isso faz com quem o vinho doce possa ser considerado mais nobre que o suave? De certa forma, sim, já que fortificação, passificação ou colheita tardia são processos bem mais laboriosos e dispendiosos do que simplesmente adoçar o vinho.

A questão socioeconômica é o maior empecilho para a popularização de alguns estilos de vinhos doces, pois chegam ao consumidor final com preços bastante elevados.
Adiu Bastos, sommelier

Porém, há opções para vários bolsos, de um Porto de entrada, encontrado no supermercado por R$ 80 ou R$ 100, a um vinho alemão feito com uvas Riesling botritizadas por mais de R$ 2 mil a garrafa de 375 ml.

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No Brasil, onde a cultura do vinho tem se tornado cada vez mais diversa, os vinhos doces têm encontrado sua vez. A região paulista de São Roque, famosa por seus licorosos baratinhos (com açúcar adicionado), deu um salto de qualidade, elaborando vinhos mais complexos, com técnicas mais apuradas e as mesmas uvas americanas ou híbridas historicamente bem adaptadas ao pedaço.

Esses vinhos são fortificados durante a fermentação e guardados em madeira por algum tempo. Na hora do engarrafamento, o enólogo faz uma seleção de líquidos de diversas barricas e os mistura, chegando ao resultado que considera ideal para o vinho que quer colocar no mercado.

Adiu acredita que há um vasto território doce a ser explorado no Brasil. "Temos o universo das variedades de Moscatel, que originam vinhos docinhos e de preço acessível. Quase toda vinícola brasileira tem seu exemplar e fazemos moscatéis meio-secos muito bem", diz.

Outra fruta que o sommelier considera uma joia escondida é a Goethe, cruzamento de uva europeia com americana levada a Santa Catarina no final do século 19. Em perigo de extinção, ela é bravamente cultivada e vinificada por famílias nos arredores de Urussanga e entrega vinhos secos ou doces cheios de aroma.

Como harmonizar os vinhos doces

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Vinhos doces não vão bem apenas no final de uma refeição, acompanhando o café e a sobremesa. Também podem brilhar na entrada e na hora do prato principal. Misturam-se bem com elementos salgados, picantes ou ácidos. Basta encontrar os pares ideais.

Uma das harmonizações clássicas com vinhos doces é feita com queijos bem salgados, como os azuis (roquefort, gorgonzola) e os duros (parmesão ou um Serra da Canastra bem maturado). Porto e Marsala são exemplos de vinhos que casam com esses queijos.

Vinhos doces brancos, como os feitos com a uva Riesling, ou os moscatéis brasileiros, são especialmente indicados para pratos apimentados. O dulçor faz um lindo contraste à picância e a intensidade das especiarias. "São vinhos que abraçam a Ásia todinha, por sua acidez potente, e também conversam muito bem com uma moqueca baiana", indica Adiu.

A acidez mais alta de alguns vinhos doces também pode fazer par com sobremesas cítricas, como a torta de limão - tente um exemplar de colheita tardia. Vinhos mais complexos, que passarm por madeira e trazem notas de frutas passas e nozes, casam com bolos de frutas, por sua semelhança, e com chocolate meio amargo.

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Adiu Bastos recomenda rasgar os manuais de harmonização clássicos e partir para suas próprias experiências na hora de harmonizar, descobrindo novas brincadeiras. E não deixar se abater por comentários atravessados. "Nunca deixe alguém diminuir seu paladar", ensina.

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15 vinhos doces para provar

Dicas do sommelier Adiu Bastos e da reportagem de Nossa

Casa del Nonno Goethe Demi-Sec (Brasil) - primeiro espumante feito com a uva Goethe no Brasil, na área de inicação geográfica Vale da Uva Goethe, em Santa Catarina. Um exemplo diferente de dulçor e borbulhas à brasileira. (R$ 78 na Vinícola Casa del Nonno)

Dom Cândido Estrelato Moscatel (Brasil) - opção docinha de boa acidez, toques herbais e de frutas como lichia, maçã e pêssego. Tutti-frutti no nariz e na boca, vindo da vinificação da Moscatel pelo método Asti em Bento Gonçalves (RS). (R$ 81,90 na Bebidas do Sul)

Licoroso Doce Niagara BellaQuinta (Brasil) - bom exemplo da nova geração de vinhos licorosos de São Roque. Feito com a uva Niagara, traz aromas de mel, nozes e damasco. Par perfeito para as sobremesas natalinas. (R$ 90,82 a garrafa de 500 ml na Vinhos de São Roque)

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Cave Antiga Vinho Licoroso 1999 (Brasil) - prova de que o Brasil produz vinhos licorosos longevos. Esta criança feita com uvas Moscato passou 10 anos em carvalho francês e chega à mesa com frutas cristalizadas, mel, baunilha e um toque defumado. (R$ 220 na Cave Antiga)

Taylor's Fine Ruby Port (Portugal) - um clássico que não dói no bolso e pode ser a porta de entrada para o nobre estilo fortificado do Vinho do Porto. Produzido no Douro com uma coletânea de uvas tradicionais, traz muita fruta vermelha à boca. (R$ 102,21 na Super Adega)

Porto Quinta do Infantado Tawny (Portugal) - os vinhos da categoria Tawny têm mais tempo de madeira e neles aparecem mais notas de frutas secas, com doçura equilibrada. Tinta Roriz, Touriga Nacional, Tourica Franca e outras uvas fazem parte do corte. (R$ 197,80 na Winerie)

Blandy's Rainwater Medium Dry (Portugal) - a Ilha da Madeira é famosa por seus vinhos fortificados, muitos deles com notas oxidadtivas no aroma e no paladar. Este é elaborado com a uva Tinta Negra e harmoniza lindamente com chocolates. (R$ 326,50 na Mistral).

Jerez Aurora Pedro Ximénez (Espanha) - Pedro Ximénez, feito com as uvas de mesmo nome, na região de Jerez, é um dos estilos mais doces do mundo. Vale como uma sobremesa ou você pode servi-lo como a calda mais luxuosa para o sorvete de nata. (R$ 159 nas Casas Bahia)

Rocca Delle Macìe Vin Santo del Chianti Classico (Itália) - estilo italiano feito com uvas passificadas, o Vin Santo passa por longo estágio em madeira e traz frutas secas e castanhas no paladar. Elaborado com as uvas Trebbiano Toscano e Mavasia Bianca. (R$ 309,51 na Decanter)

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Grande Encontro (Brasil) - Este vinho passificado gaúcho mescla líquidos de várias safras (a mais antiga, de 2006) das uvas Merlot, Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc. Tem dulçor moderado e traz um mundo de frutas secas no paladar. (R$ 480 na Vinícola Lugares)

Ludwig Wagner Ortega Beerenauslese (Alemanha) - vinho feito com uvas brancas Ortega atacadas pelo fungo Botrytis cinerea. Tem um encantador equilíbrio entre dulçor e acidez. Pode ser apreciado com queijos maduros, com sobremesas ou sozinho. (R$ 449 na Weinkeller)

Zöller Scheurebe Eiswein 2012 (Alemanha) - exemplar de "vinho do gelo" elaborado com a uva Scheurebe. Exuberante em aromas de frutas amarelas, vai bem acompanhado de sobremesas à base de maracujá, damasco ou pêssego. (R$ 890 na Weinkeller)

Clos Lapeyre Jurançon Moelleux 220 (França) - diferentemente dos estilos licorosos citados, este francês de Jurançon tem a fermentação interrompida por resfriamento. Fruto das uvas Gros Manseng e Petit Manseng, é fresco, elegante e frutado. (R$ 229,80 na Winerie)

Curatolo Arini Marsala Fine Semisecco (Itália) - Típico da região de Marsala, na Sicília, o Marsala é feito com uvas brancas locais como Grillo, Catarratto e Inzolia. Traz bastante fruta madura e são tradicionalmente usados na gastronomia. (R$ 110,61 na Decanter)

José Maria da Fonseca Moscatel Roxo 5 Anos Alambre (Portugal) - A região de Setúbal, sul de Portugal, é craque nos vinhos doces de uva Moscatel. A variedade Moscatel Roxo leva à taça notas de mel, ameixa e damasco secos e caramelo. (R$ 203,31 na Decanter)

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