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Tem mulher no alambique: mundo dos destilados está menos masculino e branco

Victoria Butler, mestra-destiladora da Uncle Nearest - e descendente direta de Nearest Green - Reprodução/Instagram
Victoria Butler, mestra-destiladora da Uncle Nearest - e descendente direta de Nearest Green Imagem: Reprodução/Instagram

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

08/03/2023 04h00

Nathan Green, chamado por todos de Nearest, era um trabalhador escravizado na fazenda de um sujeito chamado Dan Call, no Tennessee de meados do século 19. Gostava de passar os fins de tarde sentado em rodas animadas, tocando rabeca até tarde.

Não era lá muito bom no instrumento, mas se esforçava nas canções que falavam da opressão e da depravação vivida por tantos como ele. Esses "spirituals" eram músicas de lamento e sonho de salvação que dariam origem ao blues. Green era bom contador de histórias. A meninada que o cercava o chamava de tio Nearis.

Ele conseguiu sua liberdade após o fim da Guerra Civil Americana, em 1865. Na década seguinte, um dos rapazes que gostavam de ouvir seus causos, Jack, se juntou a Dan Call, o dono da fazenda, que tinha campos de milho e fontes de água, para criar uma destilaria. Mais que isso, Jack tinha ao seu lado Green, cuja falta de talento na rabeca era amplamente compensada na destilaria. Esse é o começo da história da Jack Daniel's.

Nearest foi uma das pessoas responsáveis pelo desenvolvimento do que hoje é chamado uísque do Tennessee. Ao longo dos anos, criou seu método empírico, com base na intuição.

Jack Daniel ao lado de George Green, filho de Nathan "Nearest" Green, em 1904 - Divulgação - Divulgação
Jack Daniel ao lado de George Green, filho de Nathan "Nearest" Green, em 1904
Imagem: Divulgação

Hoje, a Jack Daniel's segue firme na condição de ícone alcoólico e símbolo americano. Junto de seu arsenal imagético, a empresa alimentou um mito: seu próprio criador.

Jack Daniel foi um dos grandes americanos do século 19, cuja vida deixou poucos registros por escrito e, por isso, muito espaço para a destilação de lendas. Uma diz que ele teria fugido de casa antes dos dez anos e, na Guerra Civil Americana, teria começado a fazer uísque muito jovem, clandestinamente, com Dan Call.

Já sabe há muito tempo que a história não foi bem assim. Call e sua esposa ensinaram Daniel, que o casal via como seu protegido, a ler e a escrever. O jovem saía para vender o produto, enquanto Nearest tocava o alambique, contam Colin Spoelman e David Haskell em "Dead Distillers" ("Destiladores Mortos", sem edição brasileira). Ou seja, no princípio, Jack Daniel era o vendedor e Nearest Green, o produtor.

Mas nada disso se contava na historiografia oficial da marca. Por muito tempo, o nome de Green fora deixado de lado.

Jack Daniel, o fundador celebrado da Jack Daniel's - Getty Images - Getty Images
Jack Daniel, o fundador celebrado da Jack Daniel's
Imagem: Getty Images

Mais que reconhecimento

Em 2016, a Brown-Forman, proprietária da Jack Daniel's, aproveitou o aniversário de 150 anos do início da história da marca, e fez o devido reconhecimento a Green. Mas, nas visitas guiadas à empresa, ainda não havia menção a ele.

A empresária Fawn Weaver, ao ler a respeito da origem pouco conhecida da Jack Daniel's, decidiu investigar. Levantou documentos, registros e comprou a primeira propriedade onde a dupla começou tudo.

Weaver tinha experiência, já havia escrito um best-seller. Com sua pesquisa, escreveu um livro sobre Green e ainda investiu em uma destilaria, um parque e um museu em sua memória. Desde então, o Uncle Nearest acumulou prêmios e é, segundo a revista "Forbes", o uísque que mais cresce no país e a marca de destilado fundada por negros mais bem-sucedida da história americana.

A história de Nathan Green - Reprodução - Reprodução
A história de Nathan Green
Imagem: Reprodução

Em 2017, a Brown-Forman reconheceu "para valer" o legado de Green e passou a tratá-lo como o primeiro mestre-destilador da marca. Trata-se de um marco, porque mostra que a história do uísque americano não é um conto apenas de imigrantes escoceses-irlandeses que desbravaram o Kentucky e o Tennessee.

Isso evidencia a óbvia participação da cultura das pessoas trazidas à força da África. Elas não apenas plantavam milho e carregavam barris para cá e para lá. Muitas desenvolveram técnicas próprias e receitas secretas, passadas de geração em geração.

O passo seguinte da Uncle Nearest foi investir no turismo. Desde 2021, visitantes podem conhecer as novas instalações da destilaria, em Shelbyville. Os tours à fazenda têm a proposta de contar uma história do Tennessee sob novos pontos de vista.

Além de bar, restaurante e das obrigatórias degustações, há passeio a cavalo e até um speakeasy que só serve bebidas não-alcoólicas. A ideia é contar o papel do estado nos movimentos sufragistas (que lutava pelo voto feminino) e da temperança (que condenava o álcool).

A Lei Seca entrou em vigor em 1920 em nível federal, mas bem antes, em 1909, o Tennessee foi o primeiro estado a decretar alguma lei de combate ao álcool. O resultado foi tão fracassado quanto.

Um dos efeitos criados foi a mudança de endereço dos bares. Seu boteco preferido fechou as portas? É só cruzar a divisa com outro estado.

Em Bristol, cidade dividida entre o Tennessee e a vizinha Virgínia, o montante em impostos recolhidos sobre álcool no lado onde ele não era proibido saltou de US$ 7 mil para mais de US$ 31 mil de um ano para o outro. É o que conta Elizabeth Goetsch no livro "Wicked Nashville" ("Nashville imoral", sem edição brasileira).

Oferecer um bar não-alcoólico em uma fábrica de uísque pode soar estranho, mas a ideia, segundo Weaver contou à imprensa local, é que a visita à Uncle Nearest seja para a família toda. Uma espécie de hotel-fazenda temático ou, em suas palavras, uma "Malt Disney".

Diversidade no alambique

A história da Uncle Nearest é a mais famosa, por causa de sua ligação umbilical com o uísque mais conhecido dos Estados Unidos (aliás, Victoria Butler, mestra-destiladora da companhia, é descendente direta de Nearest Green). Mas há outros personagens que estão deixando a cena global dos destilados um pouco menos branca — e menos masculina.

Nicole Austin comanda a produção da George Dickel, também do Tennessee, e vem empilhando prêmios. No Oregon, a Freeland Spirits só tem mulheres na liderança e na operação de seus alambiques. No Kentucky, a Brough Brothers e a Fresh Bourbon são produtoras de uísque comandadas por negros.

As destiladoras da Freeland Spirits - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
As destiladoras da Freeland Spirits
Imagem: Reprodução/Instagram

Empreendedoras dos Estados Unidos investiram em tequila e pisco para o público americano, com as marcas 21 Seeds e Macchu Pisco, respectivamente.

Do lado do consumidor, também há um espírito de diversidade. A Black Bourbon Society é um clube de descontos voltado ao público negro apreciador de uísques. Com 30 mil associados e parcerias com algumas das maiores marcas do país, como Jim Beam e a própria Jack Daniel's, o clube serve como uma ponte para essas empresas aprenderem a se comunicar com consumidores que elas, até outro dia, ignoravam, segundo o site "Oakland Side".

Joy Spence, do rum Appleton - Rerpodução/Instagram - Rerpodução/Instagram
Joy Spence, do rum Appleton
Imagem: Rerpodução/Instagram
Maria Teresa Lara, da Herradura - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Maria Teresa Lara, da Herradura
Imagem: Reprodução/Instagram

Não é uma história recente, no entanto. Na América Latina, há grandes pioneiras. Na Jamaica, Joy Spence, do rum Appleton, é considerada a primeira mestra-destiladora de toda a indústria de destilados (assumiu o posto em 1997). No México, Maria Teresa Lara chegou à mesma posição na Herradura em 2009 e se tornou a primeira mulher a liderar uma produção industrial de tequila.

Isso no mundo das grandes marcas, nos portfólios dos conglomerados internacionais.

No âmbito das artesanais, não dá para não mencionar a paratiense Maria Izabel Costa, que em 1996 começou a fabricar a bebida que leva seu nome no rótulo.

Maria Izabel, que faz e batiza cachaças premium - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Maria Izabel, que faz e batiza cachaças premium
Imagem: Reprodução/Instagram

A Maria Izabel é uma das cachaças mais reconhecidas e premiadas do mercado, mas, justamente por ser "pinga de mulher", ainda sofre preconceito. O caminho é longo.