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De 'fada verde' a cubismo bêbado: como o sóbrio Picasso levou álcool à arte

Pablo Picasso bebe vinho ao estilo espanhol, em seu aniversário de 75 anos. Ao seu lado, o poeta francês Jean Cocteau - PA Images via Getty Images
Pablo Picasso bebe vinho ao estilo espanhol, em seu aniversário de 75 anos. Ao seu lado, o poeta francês Jean Cocteau Imagem: PA Images via Getty Images

Sergio Crusco

Colaboração para Nossa

26/02/2023 04h00

"Bebam por mim, bebam pela minha saúde. Vocês sabem que não posso mais beber", disse Pablo Picasso, vertendo vinho na taça de um convidado em sua casa em Mougins, Riviera Francesa. As palavras ficaram famosas como sendo suas últimas. Viraram música de Paul McCartney, "Picasso's Last Words (Drink to Me)", gravada no disco "Band on the Run", de 1973, ano da morte do pintor espanhol.

Há controvérsia sobre a relação de Picasso com a bebida, incluindo a lenda de que fora alcoólatra. Muito do mito se deve à presença constante de vinhos, licores, destilados e cervejas em suas telas, esculturas, colagens e gravuras, gerando múltiplas interpretações.

A inspiração etílica foi, inclusive, tema da recente exposição "Picasso: A Efervescência das Formas", montada na Cité du Vin, espaço dedicado à cultura do vinho em Bordeaux, sul da França.

Do santo ao sexo

Em obras adolescentes de Picasso, influenciadas pelo catolicismo, o álcool aparece representado simbolicamente em temas como a transubstanciação do sangue de Cristo em vinho no rito da eucaristia.

O Repouso do Minotauro: Champanhe e Amante (1933): a obra faz parte de uma série de 100 gravuras feitas sob encomenda para o marchand Ambroise Vollard. A taça de champanhe humaniza e sensualiza a figura da besta que, segundo historiadores da arte, representaria o próprio Picasso, à época envolvido em um triângulo amoroso - Reprodução - Reprodução
O Repouso do Minotauro: Champanhe e Amante (1933): a obra faz parte de uma série de 100 gravuras feitas sob encomenda para o marchand Ambroise Vollard. A taça de champanhe humaniza e sensualiza a figura da besta que, segundo historiadores da arte, representaria o próprio Picasso, à época envolvido em um triângulo amoroso
Imagem: Reprodução

Na maturidade, ele exploraria temas da mitologia greco-romana com uma boa dose de sacanagem, tendo o vinho com a função de transformar ou revelar personalidades e comportamentos.

Ao pisar em Paris pela primeira vez, em 1900, o artista de 19 anos traz a rua e a vida mundana para sua obra. Já rejeitara a academia formal, trocando as aulas na Real Academia de San Fernando, em Madri, que considerava enfadonhas, pelo burburinho dos cafés e dos prostíbulos.

Preferiu continuar sua educação artística em visitas ao Museu do Prado, analisando composições de mestres espanhóis como Goya, El Greco e Velázquez.

A Bebedora de Absinto (1901): tela do período em que Picasso descobre Paris e sofre influência de impressionistas como Edouard Manet, Edgar Degas e Henri de Tolouse-Lautrec - Reprodução - Reprodução
A Bebedora de Absinto (1901): tela do período em que Picasso descobre Paris e sofre influência de impressionistas como Edouard Manet, Edgar Degas e Henri de Tolouse-Lautrec
Imagem: Reprodução

"Fada verde"

O absinto, bebida da moda na virada de século, surge em várias telas do período, conhecido como fase azul. Há diversos bebedores e bebedoras de absinto nas obras da época, figuras absortas, sonolentas e solitárias a olhar para o nada.

O destilado verde já havia servido de motivo para Degas, Manet e Lautrec. A Picasso interessava retratar o desencanto das pessoas esquecidas nos cafés, durante o ciclo mais melancólico de sua arte.

O Bebedor de Absinto (Retrato de Angel Fernandez de Soto) (1903) - Reprodução - Reprodução
O Bebedor de Absinto (Retrato de Angel Fernandez de Soto) (1903)
Imagem: Reprodução
A Bebedora de Absinto (1901): o absinto aparece em várias obras  - Reprodução - Reprodução
A Bebedora de Absinto (1901): o absinto aparece em várias obras
Imagem: Reprodução

Este destilado conhecido como "fada verde", de alto teor alcoólico, causava debate entre sociedade e autoridades, acusado de atiçar alucinações, morbidade e degradação. Enquanto não era proibido (o que aconteceu em 1915, nos Estados Unidos e em vários países da Europa), o absinto foi sorvido por fãs como Baudelaire, Van Gogh, Rimbaud, Hemingway, Proust, Modigliani e Picasso. Uma turma da pesada.

Cubismo bêbado

Garrafa de Anis del Mono (1915): a marca de licor de anis, lançada no século 19, tem mais de 150 anos de história, segue popular na Espanha e tem importação para o Brasil. Anis del Mono pode ser bebido pura, com gelo, ou entrar na composição de coquetéis que peçam o elemento anisado - Reprodução - Reprodução
Garrafa de Anis del Mono (1915): a marca de licor de anis, lançada no século 19, tem mais de 150 anos de história, segue popular na Espanha e tem importação para o Brasil. Anis del Mono pode ser bebido pura, com gelo, ou entrar na composição de coquetéis que peçam o elemento anisado
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A década de 1910 representa uma ruptura na trajetória de Picasso e uma fissura na história da arte, com as experiências que formulou ao lado de um novo amigo, Georges Braque, após decidir trocar definitivamente a Espanha pela França. A dupla desafiava o academicismo, ultrajava o bom gosto burguês e estava disposta a quebrar as barreiras da percepção.

A ousadia de apresentar múltiplos pontos de vista de um objeto na tela, embaralhando a ótica e o cérebro, já havia sido testada por Picasso em 1907, na célebre "Les Demoiselles d'Avignon". A nova onda, geométrica e fragmentada, seria chamada de cubismo e, nos seus primórdios, desconcertou crítica e público.

Pernod - Reprodução - Reprodução
Mesa em um Café com Garrafa de Pernod (1912): uma das muitas composições da primeira fase cubista de Picasso, traz o pastis, licor de ervas e anis servido com água e gelo. Pernod e outras marcas de pastis ganharam maior popularidade após a proibição do absinto, em 1915. A marca Ricard pode ser encontrada no Brasil
Imagem: Reprodução

A relação com Braque foi radical e fundamental para Picasso, que trouxe cada vez mais a rua e os objetos corriqueiros para as telas.

Embalagens, maços de cigarros, cartões de visitas, recortes de jornal, anúncios publicitários, cordas, cartas de baralho, barbantes e outros elementos foram abundantamente empregados em uma série de colagens do período.

Picasso trazia à sua arte o lufa-lufa dos cafés parisienses e da cidade, em sua visão bêbada e frenética do ambiente. No fragor etílico do momento, vários rótulos de bebidas da época foram representados nessas colagens, como Pernod, Anis del Mono, Suze, Hennessy, Bass e garrafas genéricas identificadas como rum, vinho ou marc, estilo francês de destilado de uva.

Copo de absinto (1914) - Reprodução - Reprodução
Copo de absinto (1914)
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Picasso fez seis cópias desta escultura em bronze - Reprodução - Reprodução
Picasso fez seis cópias desta escultura em bronze
Imagem: Reprodução
Em 1914, às vésperas de sua proibição, o absinto volta a ser tema numa série de seis esculturas de bronze intituladas "Copos de Absinto". Em todas elas foi incrustada a pazinha vazada com que a bebida era servida e cada uma foi pintada com cores diversas.

"Ao pintar cada escultura de forma diferente, Picasso celebra a liberdade de escolha do indivíduo em relação ao consumo alcoólico. A forma aberta das esculturas sugere a atitude também aberta e política de Picasso sobre o controle de drogas", escreve o crítico de arte Brooks Adams.

Barato com chá verde

Retrato de Sylvette David (anos 1950) - Reprodução - Reprodução
Retrato de Sylvette David (anos 1950)
Imagem: Reprodução

Com uma obra tão encharcada de álcool, tornou-se fácil construir a lenda de que Pablo Picasso era um adicto, de que entrava em depressão se não houvesse bebida e sexo. "Uma completa bobagem", cravou a modelo francesa Sylvette David, musa de várias composições do gênio espanhol, retratada tanto em formas cubistas quanto acadêmicas nos anos 1950.

Sylvette pinta um quadro jovial, divertido e elegante do mestre. "Era um perfeito cavalheiro, seu senso de humor era moleque, espontâneo e contagiante", disse à fotógrafa e autora Rose Osborne, em 2019.

Pablo era completamente abstêmio e cuidava de si. Sua mente estava sempre sóbria, clara e afiada, o que era importante para que pensasse em coisas novas e criativas."

Sylvette David, 19 anos, e seu retrato feito por Pablo Picasso  - Bettmann Archive - Bettmann Archive
Sylvette David, 19 anos, e seu retrato feito por Pablo Picasso
Imagem: Bettmann Archive

Ela tem memórias gozadas de Picasso pulando na cama como um boneco de mola, pintando aranhas bastante realistas no ladrilho para pregar peça nas pessoas, bancando o caubói com um chapéu presenteado pelo ator Gary Cooper ou usando nariz de palhaço.

A energia para tanta fuzarca, ela acredita, vinha do chá verde, a única substância que viu Picasso consumir a rodo.

"Talvez ele tenha bebido quando jovem, mas nunca, de maneira alguma, na minha presença", disse Sylvette, que tinha 19 anos quando Picasso, entrando na casa dos 70, fez mais de 100 quadros, desenhos e esculturas a tendo como modelo. Algumas sessões chegavam a durar mais de seis horas.

Doze vinhos iugoslavos

Pôster de "A Batalha do Neretva", feito por Picasso - Reprodução - Reprodução
Pôster de "A Batalha do Neretva", feito por Picasso
Imagem: Reprodução

O depoimento de Sylvette, no entanto, não bate muito bem com o epsódio ocorrido em 1969, quando Picasso foi convidado pelo diretor iugoslavo Veljko Bulajic a desenhar o cartaz do filme "A Batalha do Neretva", uma superprodução. O elenco all star incluía Orson Welles, Yul Brynner, Sylva Koscina e Franco Nero.

Na hora de acertar a conta, embora o filme tivesse um gordo orçamento, os produtores descabelaram-se: quanto custaria a brincadeira? Picasso cobrou um preço módico: pediu que lhe fosse enviada uma caixa com os melhores vinhos da extinta Iugoslávia. Foram incluídos no pacote 12 rótulos de regiões como Dalmácia, Sérvia e Macedônia.

De acordo com outra fonte bem próxima — a última esposa, Jacqueline Roque —, a temperança era uma das virtudes do pintor.

"Picasso é sóbrio e frugal como uma cabra", disse ela, em entrevista à revista "Vogue". Não há registro de que tenha bebido os vinhos enviados por Bulajic ou se preferiu ofertá-los aos amigos.

Segundo a revista "Time", em artigo publicado em 1973, as palavras que inspiraram a canção de Paul McCartney não foram exatamente as últimas de Picasso, mas é dado como certo o fato de que as proferiu enquanto servia vinho a um convidado, o advogado Armand Antebi. Antes de despedir-se, ainda disse, por volta das 23h30: "E agora preciso voltar ao trabalho".

Naquela madrugada, pintou até 3 da manhã — trabalhava duro para uma grande exposição no Palácio dos Papas, em Avignon. Na manhã seguinte, não conseguiu levantar da cama. Foi acudido por Jacqueline, que imediatamente chamou o médico, mas não houve tempo — um infarto o interrompia. Tinha 91 anos e oito décadas de vida dedicadas à arte.