Topo

Queijo mais antigo do Brasil, coalho vai da cozinha tradicional à molecular

Queijo coalho é um dos maiores símbolos de alguns estados do Nordeste, mas também faz sucesso pelo resto do país - Getty Images/iStockphoto
Queijo coalho é um dos maiores símbolos de alguns estados do Nordeste, mas também faz sucesso pelo resto do país
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Flávia Schiochet

Colaboração para Nossa

07/11/2022 04h00

Com sua massa densa e salgada, o queijo coalho tem personalidade para estrelar em petiscos, recheios e sobremesas. É o tipo de queijo mais antigo feito no Brasil: preparado desde o século 16 na Capitania de Pernambuco, onde hoje é o Nordeste brasileiro.

A região segue como a principal produtora deste queijo 500 anos depois, com o maior volume feito nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco.

Em alguns estados do Nordeste, ele é o queijo do dia a dia, recheando tapioca, servido tostado com cuscuz, junto de fruta ou no pão, e é parte fundamental de pratos regionais, como o baião de dois e a cartola.

No baião, ele aparece em cubos em meio ao arroz, feijão e carne seca, enquanto na sobremesa cartola, uma fatia grossa é chapeada para ser servida com bananas fritas na manteiga e canela.

Todas as minhas lembranças afetivas na cozinha levam queijo coalho. Cozido junto no caldo do feijão verde, feito na brasa com o churrasco e também puro com café", elenca a cearense Isadora Freitas, sócia do Fuga Café, em Curitiba.

Cuscuz com ovo e queijo coalho tostado, do Fuga Café  - Divulgação - Divulgação
Cuscuz com ovo e queijo coalho, do Fuga Café
Imagem: Divulgação
Cartola, do Fuga Café  - Divulgação - Divulgação
Cartola, do Fuga Café
Imagem: Divulgação

Esta última combinação é menos ortodoxa: ela mergulha o queijo cortado em bastões no café preto, e aprecia a mistura do leve amargor da bebida com o salgado do queijo.

No Fuga Café, o queijo coalho está em cubos tostado no cuscuz com ovo, na cartola e no sanduíche Pão com Coalho, uma das receitas mais fáceis de adaptar: pão de fermentação natural, uma compota ou geleia, e uma fatia grossa de queijo coalho tostado. "Nós escolhemos servir com doce de abóbora porque é um ingrediente que tem muito aqui no Paraná", diz Isadora.

O coalho de verdade

Quando se mudou para Curitiba, há 14 anos, ela penou para encontrar queijo coalho parecido com o que estava acostumada a comer em Crato, Ceará.

Alguns feitos aqui no estado acabavam com o miolo derretido quando esquentava. Ele tem que dourar só a parte de fora e dentro ficar firme", descreve Isadora.

Queijos curados do Nordeste do Brasil - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Queijos curados do Nordeste do Brasil
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Não derreter é uma das características mais marcantes do queijo coalho. "O que faz com que ele resista ao calor é o aquecimento da massa e o seu dessoramento. Com isso, fica mais seca", ensina Flavia Soni Rogoski, mestre queijeira e proprietária da delicatessen Bon Vivant, no Mercado Municipal de Curitiba.

A receita é uma adaptação dos portugueses que ocuparam o Nordeste brasileiro, onde os queijos frescos fermentavam novamente depois de prontos e se estragavam. Com menos umidade na massa e uma adição de sal, o tempo de conservação era maior. Não por acaso, outras regiões de clima semelhante desenvolveram queijos parecidos: um exemplo é o halloumi, consumido no Mediterrâneo e Oriente Médio.

Queijo coalho - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Queijo coalho
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Para Isadora, o bom queijo coalho é o que tem a massa bem furadinha — a aparência é conquistada pela adição de fermento láctico, e a atividade dos micro-organismos acrescenta também acidez e notas mais complexas em sabor e aroma.

Coalho vira espuma

Baião de dois, do Pé de Fava - Ligia Skowronski - Ligia Skowronski
Baião de dois, do Pé de Fava
Imagem: Ligia Skowronski

"Eu tenho uma relação com o queijo coalho do mesmo jeito que o mineiro tem com o queijo da Canastra e o italiano com o grana padano", compara o cearense com sotaque paulistano Francisco Pinheiro.

Nascido em Deputado Irapuan Pinheiro e criado na cidade de São Paulo comendo muito feijão de corda com nata e queijo coalho, Francisco participou dos reality shows "MasterChef Profissionais" e "Mestre do Sabor", nos quais sempre tentava incluir o ingrediente.

Por ter essa intimidade com o queijo coalho, ele decidiu subverter sua natureza sólida e transformá-la em espuma em 2020, quando foi convidado pela empresária Silvia Ribeiro para repaginar o restaurante Pé de Fava.

Eu já havia preparado queijo coalho como protagonista de 'n' maneiras, mas ainda não tinha tentado fazer espuma", contou o chef.

Como o tema do restaurante é a cozinha nordestina, ele viu no queijo coalho um dos ingredientes-chave para desenvolver os pratos.

Movido pelo desafio, Francisco fez inúmeros testes combinando queijo coalho, um amiláceo e uma fonte de gordura. Muitas das vezes, a espuma não mantinha a estrutura em temperatura morna, em outras, o sabor do queijo coalho sumia. "Cheguei a uma combinação de cará, queijo coalho, creme de leite e manteiga de garrafa", detalha Francisco.

Ovo frito com espuma de queijo coalho e quiabo, do Pé de Fava - Ligia Skowronski - Ligia Skowronski
Ovo frito com espuma de queijo coalho e quiabo, do Pé de Fava
Imagem: Ligia Skowronski

O prato leva quiabo cortado fininho, feito na frigideira com manteiga de garrafa, um ovo caipira estalado e glace de frango. A clara do ovo é coberta pela espuma a 52 °C de queijo coalho e, por cima de tudo, flor de sal. A receita exata da alquimia, no entanto, o chef não revela.

O Pé de Fava, inaugurado em junho no bairro Santana, na capital paulista, ficava em Guarulhos anteriormente, e ficou famoso em 2019, quando o chef Erick Jacquin gravou um episódio do reality "Pesadelo na Cozinha". Com a compra da marca pela empresária, aquele restaurante que horrorizou o jurado do MasterChef não existe mais.

Possibilidades na cozinha

Queijo coalho com melaço e ervas - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Queijo coalho com melaço e ervas
Imagem: Getty Images/iStockphoto

No país do Romeu e Julieta, servir queijo com um doce de fruta é de conhecimento popular. O contraste do salgado do queijo com o doce de uma fruta glaceada, em compota ou em geleia é bem-vindo como aperitivo ou sobremesa.

Quem preferir, pode usar outra fonte de doçura, como mel, melado de cana ou mel de engenho, e complexificar pratos como a tradicional cartola.

"Para o novo cardápio do Pé de Fava, a cartola terá queijo coalho tostado, banana gratinada com açúcar mascavo, calda de café, espuma de queijo coalho com base de creme patissier", detalha Francisco. A previsão é começar a servir em novembro.

Harmonização de queijos coalho artesanais de diferentes produtores com bebidas também são uma possibilidade, ainda pouco explorada. A mestre queijeira Flavia Soni Rogoski participou de harmonizações com cachaça e café.

Para o meu paladar, o queijo coalho aquecido fica mais complexo e funciona melhor", opina.

Queijo coalho não é só o que faz sucesso no palitinho pelas praias - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Queijo coalho não é só o que faz sucesso no palitinho pelas praias
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Como não derrete, a dica dos especialistas é usar o queijo coalho em preparações como farofas, bolinhos, croquetes e refogados.

Flavia relembrou uma farofa de farinha de milho com bacon e queijo coalho que provou há uns anos e Francisco, a repaginação do bolinho de feijão em um croquete de feijão recheado com queijo coalho e molho de coalhada.

Ambas as combinações tiveram no salgado e ácido do queijo coalho a complementação ideal para a gordura no preparo.

Receitas com
queijo coalho