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Ele conquistou o Brasil com cozinha portuguesa raiz: 'Mais que bacalhau'

O chef português Vitor Sobral há 30 anos dissemina a autêntica culinária de seu país no Brasil - Divulgação
O chef português Vitor Sobral há 30 anos dissemina a autêntica culinária de seu país no Brasil Imagem: Divulgação

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa

09/09/2022 04h00

A primeira vez que o chef português Vitor Sobral pisou no Brasil, ficou impressionado com a variedade de ingredientes — especialmente as frutas — que se podia encontrar nos mercados do Rio de Janeiro e Niterói, cidades que visitou ainda aos 25 anos.

"Na altura, os camarões eram maravilhosos, bem melhores do que são hoje", ele lembra. Mas o que o impressionou de verdade foi o "calor" dos locais.

Eu adorei o país, o clima afetivo das pessoas, a forma como conviviam e a maneira que fui recebido" Vitor Sobral

Hoje, quase três décadas depois, ele criou uma relação muito próxima com o nosso país. Tanto que se tornou co-proprietário e chef executivo de uma rede de quatro casas em São Paulo, entre a Tasca da Esquina, a Tasquinha da Esquina e a Padaria da Esquina.

O objetivo de Sobral, ele diz, é dissipar a riqueza da cozinha portuguesa. "Mostrar que a culinária do meu país é muito mais diversa do que a que geralmente chega à maioria das pessoas", explica, se referindo ao bacalhau, ao pastel de nata, etc. "Portugal é mais que isso", afirma.

O chef quer mostrar que a culinária portuguesa vai muito além do pastel de nata e do bacalhau - Divulgação  - Divulgação
O chef faz questão de mostrar que a culinária portuguesa vai muito além do pastel de nata e do bacalhau
Imagem: Divulgação

É essa cozinha tradicional que busca seguir a referência histórica das receitas que também tem tentado trazer para o Brasil desde que decidiu abrir seu primeiro negócio.

O chef conta que percebeu que havia uma oportunidade aqui para servir uma comida portuguesa "sem ter que ceder tanto ou contar uma história diferente do ponto de vista de um português".

Não foi fácil: primeiro porque os brasileiros se acostumaram a adaptar receitas de acordo com seus gostos e ingredientes que podiam encontrar — nem sempre seguindo os preceitos das cartilhas mais tradicionais, como aconteceu em muitas outras cozinhas, da italiana à japonesa (com a pizza de brigadeiro e o cream cheese no sushi).

Segundo porque, sem esse apego à tradição, os clientes locais sempre queriam mudar os pratos, fazer combinações que, para um português, pareciam uma heresia, como pedir arroz sempre como acompanhamento.

Prato do Oficina da Esquina, um dos empreendimentos do chef - Antônio Araújo/Divulgação - Antônio Araújo/Divulgação
Prato do Oficina da Esquina, um dos empreendimentos do chef
Imagem: Antônio Araújo/Divulgação

Servir batatas num bacalhau à Brás é uma coisa complicada. Eu disse: não vou poder lutar contra o mundo. No meu prato ninguém vai mexer, mas posso servir à parte, como guarnição. Quem quiser, pede"

Sobral afirma que não é uma questão de reprimir os gostos. "Eu acho que faz todo sentido o brasileiro querer comer bacalhau com arroz. O que não se pode é dizer que é bacalhau como se come em Portugal. E eu, como português, não posso servir", diz.

Conquistando território

Aos poucos, segundo ele, os próprios brasileiros descobriram os sabores mais tradicionais de Portugal. "As pessoas começaram a pedir arroz de cabidela, cozido à portuguesa e outras receitas que comecei a fazer para clientes mais específicos", conta.

Hoje, diz, muitos pratos mais portugueses foram sendo inseridos no menu, entre os arrozes mais caldosos (ao contrário do branco e soltinho), a alheira, as muitas variedades de bacalhau — a respeitar os preparos de cada uma, claro.

Mix de sobremesas  - Jorge Simão/Divulgação - Jorge Simão/Divulgação
Mix de sobremesas
Imagem: Jorge Simão/Divulgação
Influências, sim, também são permitidas - Divulgação - Divulgação
Influências, sim, também são permitidas
Imagem: Divulgação

Sobral também diz, entretanto, que o contato com os ingredientes brasileiros influenciaram muito a sua cozinha — inclusive a que serve em seus restaurantes em Portugal.

"A minha cozinha é portuguesa original, sem dúvida, mas há muita influência dos países que visitei e com os quais Portugal estabeleceu algum tipo de troca", afirma, em relação ao Brasil, claro, mas também Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, entre outros.

"Uso muita mandioca na minha cozinha e mandioquinha também. Quiabo eu não usava, agora adoro", conta. Produtos como leite de coco, óleo de dendê e frutas tropicais passaram a fazer parte da sua lista de compras.

É curioso pensar que muitos dos alimentos que são amados no Brasil, como papaia, manga e coco, foram introduzidos no país pelos portugueses e nós nunca usamos esses produtos"

Sobremesa do restaurante Oficina da Esquina - Antônio Araújo/Divulgação - Antônio Araújo/Divulgação
Sobremesa do restaurante Oficina da Esquina
Imagem: Antônio Araújo/Divulgação

Ao mesmo tempo que ingredientes das Américas, como a batata, o tomate e o milho se tornaram fundamentais para as cozinhas europeias, inclusive a portuguesa, que se baseia muito nesses produtos.

"A cozinha original brasileira serviu como uma luz daquilo que eu usufruía. É muito difícil encontrar um prato na cozinha brasileira que a matriz não seja portuguesa ou não tenha nenhuma influência", diz.

Diversidade brasileira

Sobral também se diz impressionado com o avanço que a cena da gastronomia no Brasil alcançou nos últimos anos — em ingredientes, mas também em serviço e diversidade.

O chef lembra, por exemplo, que as primeiras vezes que visitou cidades como São Paulo e Rio, ainda na década de 1980, o serviço de vinho ainda estava engatinhando no país. "O vinho branco era servido em temperatura ambiente", recorda.

Cinco anos depois, porém, qualquer churrascaria tinha sommelier, bom serviço de taças. Se me perguntarem onde é que houve evolução dos serviços de vinhos mais rápido no mundo eu digo que foi, garantidamente, no Brasil"

A diversidade de uma cidade como São Paulo, que recebe imigrantes de todas as partes do mundo, também surpreendeu o chef desde o princípio. "Temos muitos clientes japoneses e coreanos nos restaurantes, que adoram a comida portuguesa que fazemos. Isso é maravilhoso".

Chef Vitor Sobral - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Essa diversidade também se manifestou nas suas próprias casas, que se adaptam aos hábitos dos brasileiros. Na Padaria da Esquina, por exemplo, também servem almoço (em pratos feitos), algo que não existe em Portugal. "O que é uma pena, pois é um conceito fantástico, se pensarmos que também temos tantas padarias", defende.

Por conta dos negócios, Sobral visita o Brasil pelo menos duas vezes por ano. "Só não fui durante a pandemia, o que me custou muito", desabafa.

No país, construiu sociedade — com o parceiro de negócios Edrey Momo — e muitos amigos. "Curiosamente, tenho mais amizades na gastronomia brasileira do que na portuguesa", confessa. "E é onde sirvo meu melhor bolinho de bacalhau", ri.

Para o chef, a forte ligação que criou com o país em quase três décadas foi muito importante por definir sua carreira e sua cozinha.

O Brasil mudou minha forma de ver a gastronomia, me fez ser uma pessoa diferente"

Ninguém pode negar que, em retribuição, Sobral também fez a cozinha portuguesa ter um sabor mais especial por aqui.