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Lago da morte: como 'tsunami de gás' matou milhares de pessoas e animais

6º26N, 10º17'L
Lago Nyos
Menchum, Noroeste, Camarões

"As pessoas estavam morrendo por todo lado. Dentro das casas, na rua, na floresta, no rio. Começavam a tossir, choravam, gritavam no chão, vomitavam sangue", descreveu um sobrevivente, que sentia seu corpo bambo, como se estivesse bêbado.

Quando a nuvem se dissipou, eram poucos sobreviventes.

As cenas de horror são reais, aconteceram há menos de 40 anos, mas poucos no mundo se lembram ou sequer ouviram falar dessa história. Se não tivesse acontecido na África, já teria inspirado uma penca de séries documentais, podcasts e afins.

O Lago Nyos era chamado carinhosamente de "bom lago" pelos habitantes dessa região no noroeste de Camarões. Hoje, ele é o "lago mau". Assim como os outros lagos que se formam em crateras de vulcões, ele tinha altos níveis de gás carbônico, proveniente da atividade vulcânica.

Mas, diferentemente dos outros do tipo, o Nyos não perdeu CO2 com o tempo. Reteve o gás por séculos, transformando-se em uma espécie de bomba de alta pressão.

Na noite de 21 de agosto de 1986, a bomba explodiu. Não se sabe o que causou, se um deslizamento de terra ou uma pequena erupção no leito do lago. Os resultados foram catastróficos.

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Imagem: Getty Images

Uma assustadora coluna de água de 100 metros de altura se formou, criando um inusitado tsunami em que a água não era o maior perigo. Era o gás, que se espalhou a uma velocidade que chegou a 100 km/h em um raio de 25 km.

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Mais pesado que o ar, o dióxido de carbono acabava descendo e se acumulando nas partes mais baixas. Mais próximo do chão, maior o perigo — é a mesma lógica, em um contexto pra lá de diferente, da "Porta do Inferno" da Turquia greco-romana.

Quanto mais próximo do lago, menores as chances de sobrevivência. Como muitos já tinham ido dormir, aí era um abraço.

Tal qual uma sombra da morte, o gás, ao se espalhar, extinguia imediatamente chamas de velas e fogueiras. Imagine terminar o jantar e, de repente, perceber que não há oxigênio para respirar.

Na vila de Nyos, de 800 habitantes, só seis sobreviveram. Aqueles que chegaram vivos à manhã seguinte só o conseguiram porque fugiram, de moto, para lugares mais elevados, onde dava para respirar.

Alguns disseram ter ouvido um estrondo distante. Outros sentiram cheiros que pareciam pólvora queimada ou ovos podres. O pânico se alastrou à medida que as pessoas se sentiam tontas, corriam para a rua e desmaiavam. Muitos corpos foram encontrados depois no mato, com as mãos inutilmente tapando o nariz.

Quem tinha a sorte de apenas desmaiar e acordar horas depois se deparava com o horror indescritível de ver todos ou praticamente todos ao redor, inclusive animais, mortos. Na vila de Su-Bum, um homem contou à revista "Time", à época, que perdera a esposa e os seis filhos.

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Em uma outra localidade, todos os humanos, porcos, cabras e vacas morreram. A única criatura viva quando os socorristas chegaram, era, estranhamente, uma galinha.

Em Cha, Kumba Ndongabang observava, incrédulo, os dois túmulos onde jaziam suas cinco esposas. Ao redor das carcaças dos animais não havia moscas, porque as moscas também estavam mortas.

Cerca de 300 pessoas lotaram os poucos hospitais da região. Os números oficiais de mortos falavam em 1.746 pessoas e cerca de 3,5 mil animais. Mas eles podem ser maiores, porque muitos corpos foram enterrados às pressas, inclusive em valas comuns, por causa do medo de uma epidemia de cólera ou tifo se alastrar, embora as chances de isso ocorrer sejam quase nulas, garantem especialistas.

As autoridades tiveram dificuldade em lidar com a situação. Primeiro, o ineditismo. Esse tipo de desastre natural, chamado erupção límnica, só havia acontecido uma única vez na história recente. Em 1984, apenas dois anos antes, a explosão do Lago Monoun, também em Camarões, matou 37 pessoas.

Segundo, a inacessibilidade do local. Nyos fica a mais de quatro horas de distância de Bamenda, a principal cidade da região. Escavadeiras tiveram dificuldade em se locomover em meio a tantos morros.

Por fim, a morosidade política. Aqui, zero novidade.

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Imagem: Getty Images

As autoridades acreditavam que a tragédia seria semelhante à de dois anos antes, com só algumas dezenas de mortos. Além disso, o governo estava mais preocupado com a chegada do primeiro-ministro de Israel, Shimon Peres, para o que seria a primeira viagem de um chefe de Estado israelense a um país da África subsaariana em duas décadas.

Coube a Peres dar uma aula de como reagir a tragédias. Segundo a "Time", as notícias do ocorrido se espalharam pelo mundo apenas três horas antes do avião do primeiro-ministro decolar de Tel Aviv com destino a Iaundê. Tempo suficiente para ele encher a aeronave com meia tonelada de suprimentos e convocar um time de médicos militares.

O problema era o isolamento. Foram necessários dois dias para que a ágil e surpreendente ajuda israelense chegasse.

O lago perdeu o aprazível tom de azul e ganhou uma coloração marrom-avermelhada, por causa do ferro, antes concentrado no fundo, que se espalhou pela superfície. Virou um poço da morte.

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Imagem: Getty Images
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Que fim levou?

Cerca de 4 mil pessoas tiveram que abandonar a região. Muitos retornaram.

Em 2001, um sistema de sucção foi instalado no lago para retirar o dióxido de carbono excedente e evitar novas tragédias. Esta reportagem de 2016 da rede Al-Jazeera mostra a situação no local:

Os perigos agora são conhecidos e a ciência os enfrenta. A situação está controlada, garantem as autoridades. Mas o medo não se dissipou.

E se algo do tipo acontecesse no Kivu, um dos grandes lagos africanos, com uma área cerca de 1,8 mil vezes maior que a do Nyos, localizado em uma região muito mais povoada, na fronteira da República Democrática do Congo com Ruanda?

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A cada milênio, esse lago, com doses consideráveis de gás carbônico, tem um histórico de levar diversas espécies à extinção. Se algo como o que rolou no Nyos acontecesse no Kivu, milhões poderiam morrer. Isso em uma das regiões mais tensas e negligenciadas do mundo há décadas.


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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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