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REPORTAGEM

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O misterioso médico que mumificava cadáveres no meio da selva venezuelana

Visitantes ao lado de múmia criada no laboratório do Dr. Gottfried Knoche - Wikimedia Commons
Visitantes ao lado de múmia criada no laboratório do Dr. Gottfried Knoche Imagem: Wikimedia Commons

Colunista do UOL

06/11/2022 04h00

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10º34'N, 66º54'O
Mausoléu do Dr. Knoche
Parque Nacional Waraira Repano, La Guaira, Venezuela

Não foi por falta de aviso, especialmente nos grupos de Whatsapp: o Brasil vai virar a Venezuela. Tempos sombrios.

Ironias à parte, vamos sair dos clichês de zumbi de zap? A Venezuela é muito mais do que uma ditadura exportadora de refugiados e migrantes.

No século 19, antes da descoberta do petróleo, quando a economia se baseava no café e no cacau e a situação política era muito instável (mais do que hoje), o país recebia poucos imigrantes. Havia uma comunidade de corsos e outra de alemães, nada muito mais que isso.

Um desses imigrantes era um misterioso médico que vivia em uma fazenda no meio da selva. Lá, tornou-se referência em mumificar cadáveres.

Gottfried Knoche era um médico alemão que se mudou para a Venezuela em 1845, a fim de atender a comunidade de seu país na cidade de La Guaira, na costa do país, próxima a Caracas. Passou a tratar tudo que era paciente e foi reconhecido pelo combate ao cólera, doença que vinha castigando a população. Uma vez estabelecido, trouxe a esposa e as filhas e fincou os pés no belo litoral caribenho.

O médico alemão Gottfried Knoche - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
O médico alemão Gottfried Knoche
Imagem: Wikimedia Commons

Se no dia a dia seu trabalho era tentar manter as pessoas vivas, depois do expediente o interesse estava nos mortos. Knoche tinha um grande interesse por processos de embalsamamento. Aproveitou os sangrentos dias da Guerra Federal, um dos tantos conflitos armados da Venezuela do século 19, para fazer experimentos em corpos de soldados mortos e não identificados.

O cirurgião recolhia os cadáveres e os transportava de mula até uma fazenda que ele havia comprado para passar os fins de semana. Construiu ali uma casa ao estilo das que se faziam na Floresta Negra, a esfíngica região de conto de fadas do sudoeste da Alemanha — o que, vamos combinar, só serviu para cobrir ainda mais de mistério esse personagem peculiar.

Ilustração da Hacienda Buena Vista  - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Ilustração da Hacienda Buena Vista
Imagem: Wikimedia Commons

Com o tempo, Knoche se mudou de vez para a fazenda, que, por ficar a mais de mil metros de altitude, era um lugar muito mais fresco do que o litoral (sua esposa sofria bastante com o calor abafado de La Guaira). De quebra, a casa, com amplas janelas, oferecia uma vista inspiradora para a costa.

"Temos a impressão de que fomos retirados do trópico para penetrar bruscamente no célebre Grão-Ducado de Baden", escreveu um visitante da casa. "Estamos em plena Germânia, assim proclamam desde a mobília até os quadros e tapeçarias que apregoam os episódios épicos culminantes do antigo império."

Vista panorâmica do topo da montanha Ávila, em Galipan, no Parque Nacional Waraira Repano, Venezuela - iStockphotos - iStockphotos
Vista panorâmica do topo da montanha Ávila, em Galipan, no Parque Nacional Waraira Repano, Venezuela
Imagem: iStockphotos

Casa das múmias

No laboratório que montou na propriedade, Knoche desenvolveu um líquido para ser injetado nos cadáveres e conservá-los sem a necessidade de remover órgãos. "Os cadáveres tinham apenas uma incisão de 6 centímetros ao longo do pescoço, que foi suturada, de onde se deduz que o fluido de embalsamamento foi injetado pela artéria carótida direita", explica um artigo da "Revista de la Sociedad Venezolana de la Historia de la Medicina". Não se sabe a fórmula, mas provavelmente era à base de cloreto de alumínio.

Ele tratou dezenas de corpos, o que lhe rendeu fama e anedotas. Diziam até que Tomás Lander, um importante político e jornalista, tinha sido mumificado e colocado sentado em frente à sua casa. O corpo teria ficado ali por 40 anos.

Moradores locais com a múmia do soldado José Perez  - Wikimedia Commons - Wikimedia Commons
Moradores locais posam com múmia criada pelo doutor alemão
Imagem: Wikimedia Commons

Provavelmente não é verdade, porque Lander morreu em 1845, antes de Knoche criar seu líquido. Ainda assim, o criador de múmias pôde aplicar seu método em personalidades importantes. Caso de Francisco Linares Alcántara, presidente do país, que morreu em exercício, repentinamente, em 1878, em La Guaira (a versão oficial fala em complicações de uma doença pulmonar, mas, na boca pequena das ruas, ele foi envenenado).

Knoche ergueu um mausoléu para ele e sua família na propriedade. Apesar de prestigiado e respeitado na sociedade, afinal era um médico que realmente havia se dedicado a combater uma epidemia avassaladora, ele vivia cada vez mais recluso. Uma mulher que visitou o local em 1890 afirmou o seguinte:

"Ele é um homem bem estranho. Lá em cima, em seu jardim, tem uma lápide em que se lê: 'Aqui jaz o dr. Knoche, nascido em tal e tal dia e ano — não lembro a data — e falecido?", essa última data está em branco. Ele se senta lá com duas irmãs que moram com ele e deixa sua imaginação correr solta sobre como será bom quando ele descansar lá."

"Então ele me pegou pelo braço paternalmente, me levou para seu escritório e me disse: 'Agora não tenha medo, eu tenho alguns mortos aqui com quem eu moro'. E havia um homem e uma mulher, uma menina e um trabalhador, com o cachimbo na boca, completamente vestidos, mas... Eram cadáveres. Eles se ofereceram enquanto ainda estavam vivos, para que quando morressem fossem cobertos com uma substância inventada pelo dr. Knoche. Os cadáveres me olhavam com tanta ternura com seus olhos de vidro que parecia que estavam vivos."

A entrada da antiga casa, 'protegida' por uma das múmias remanescentes  - Reprodução - Reprodução
A entrada da antiga casa, 'protegida' por uma das múmias remanescentes
Imagem: Reprodução

O alemão morreu em 1901, aos 87 anos. Sua assistente, Amalie Weismann, aplicou-lhe o soro. Vinte e cinco anos mais tarde, o mausoléu estava quase todo ocupado por membros da família (diziam que os cachorros, igualmente embalsamados, guardavam o lugar). Havia somente mais uma tumba, reservada a Amalie.

Ela convidou o cônsul alemão, Julius Leisse, para subir a serra, ouvir sua história e conhecer os segredos daquela propriedade. Amalie morreu pouco depois, e o cônsul garantiu que a dose preparada pelo finado médico décadas antes fosse injetada no corpo da mulher.

Leisse trancou o mausoléu e jogou a chave dentro. Mas o desejo da última sobrevivente da fazenda durou pouco. Em 1929, uma expedição constatou que os túmulos foram violados.

O local atraiu visitantes curiosos - Reprodução - Reprodução
O local atraiu visitantes curiosos
Imagem: Reprodução
Que faziam fotos com as múmias e esqueletos - Reprodução - Reprodução
Que faziam fotos com as múmias e esqueletos
Imagem: Reprodução

Como a fazenda está hoje

Seguiram-se décadas de abandono, a natureza dominou o terreno e resta pouco ou quase nada do casarão. A propriedade hoje fica dentro dos limites do Parque Nacional Waraira Repano (conhecido com El Ávila), um popular destino ecoturístico venezuelano, cheio de trilhas em florestas em altitudes que variam dos 120 aos 2.765 metros. Empresas de turismo organizam passeios de dia inteiro para o antigo mausoléu.

Terra a Vista :: Dr. Gottfried Knoche - Reprodução - Reprodução
Ruínas da fazenda do Dr. Gottfried Knoche
Imagem: Reprodução

Em 2009, o local passou por um restauro e ganhou réplicas das múmias — as originais se perderam há muito tempo. Pouco resta do legado do misterioso médico que trocou a Alemanha pela natureza exuberante da Venezuela, onde viveu cercado de corpos embalsamados, até se tornar mais um deles.