Rafael Tonon

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Opinião

Por que é patética a ideia de que preferiremos não cozinhar mais em casa

Uma previsão do fundador do maior aplicativo de entregas da América Latina fez muita gente engasgar mesmo sem ter comido nada.

Em uma entrevista recente, Fabricio Bloisi sinalizou que entre cinco e dez anos preferiremos não cozinhar mais em casa. Poderia ser uma frase profética se não fosse, no fundo, patética.

Claro que é preciso entender o contexto: defendia ele que a popularização do delivery vai chegar às camadas mais baixas a ponto das pessoas optarem por não cozinhar em suas casas.

Mas, de muitas perspectivas, a afirmação dele não passa, é claro, de jogada de marketing — para não dizer pura forçada de barra.

Parece difícil que a raça humana abra mão de um hábito arraigado e constituído há mais de 1,5 milhão de anos porque a plataforma criada por ele tem se tornado "cada vez mais popular". O ego dos empresários precisa mesmo ser estudado.

Mas enquanto isso não acontece, são os dados que nos dão conta de demonstrar que Bloisi está bastante mal informado (ou mal intencionado) naquilo que diz

Fabricio Bloisi, fundador do Ifood
Fabricio Bloisi, fundador do Ifood Imagem: Divulgação

A pandemia, sabemos todos, transformou as nossas relações com a comida — e despertou em muitas pessoas um lado cozinheiro que elas mesmo desconheciam.

Mais de 70% das pessoas ouvidas em uma pesquisa feita nos EUA dizem ter mantido o hábito de se dedicarem a cozinhar que conquistaram durante os confinamentos — ainda que por menos horas por semana.

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Uma tendência que se comprova também em diversos países do mundo: livros de receita pululam nas prateleiras, jornais como o NYTimes conseguiram ampliar consideravelmente suas assinaturas mensais graças a uma seção dedicada a ajudar pessoas a cozinharem.

Outro horizonte que parece contradizer as falas do CEO do iFood é que a variação do custo dos alimentos, da habitação, da gasolina, dos serviços públicos e de outros bens básicos tem feito muitas famílias cortarem despesas em muitos países do mundo.

As famílias estão sentindo o aperto financeiro e, por sua vez, passam a diminuir significativamente suas despesas discricionárias como, adivinhe Bloisi, as taxas de entregas das plataformas de serviço.

Sair para comer em restaurantes ou pedir uma pizza no final de semana se tornou um luxo inacessível para muitas famílias que podiam fazer isso de vez em quando. Cozinhar continua sendo o jeito mais barato de se alimentar, caso o iFood nunca tenha se dado ao trabalho de pagar uma pesquisa sobre isso.

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Imagem: Getty Images

Mas a fala do CEO ignora algo ainda mais importante sobre o papel de cozinharmos na nossa sociedade, que nunca foi (só) sobre conveniência, como ele quer fazer entender.

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Com uma cenoura numa mão e uma faca bem afiada na outra, tivemos o suficiente para conclamar uma das maiores revoluções que podemos empreender do ponto de vista individual: a do ato de cozinhar.

Se foi justamente ele que transformou a nossa espécie (ajudando a melhorar o nosso cérebro), ressignificou nossa existência sobre a Terra e determinou nossa evolução, preparar a nossa própria comida teve e tem um impacto enorme na nossa vida.

E não valorizá-lo é uma falta de respeito com nossos ancestrais do Paleolítico que se esforçaram tanto para conseguir esmagar raízes com as mãos, que lapidaram uma pedra para retirar as escamas de um simples peixe ou até aprenderam por séculos a dominar as chamas.

É virar as costas para o grande salto evolutivo que justamente essas ações nos relegaram como espécie. Só somos o que somos porque alguém lá atrás decidiu que era hora de processar a comida antes de metê-la na boca.

Cozinhar nos permitiu ingerir muito mais calorias em muito menos tempo, o que nos liberou para desenvolver outras atividades complexas que até então não podíamos como espécie.

Interpretar símbolos, desenvolver tecnologia e constituir a linguagem; viajar para outros lugares (e criar uma coisa que voa para isto), fundamentar a ciência, produzir arte por puro prazer — nada disso seria possível se não tivéssemos aprendido a cozinhar.

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Por isso, ao invés de defender que em 10 anos não iremos mais cozinhar, gostaria de ver empresários do setor a incentivar que todos nós deveríamos saber cozinhar, como sabemos ler e escrever, amarrar o tênis, escovar os dentes ou pagar um ônibus.

Da mesma forma que aprender a conduzir nos dá, mais do que uma carteira, a liberdade de ir e vir, se meter na cozinha nos torna independentes no sentido maior da palavra.

Quando aprendemos a cozinhar arroz o que estamos desenvolvendo é nossa autonomia, ou a capacidade de dizer não a alimentos ultraprocessados, por exemplo.

Quando sabemos preparar o jantar com os restos da geladeira (um ovo, um iogurte, um bocado de coentros tristes) criamos a autossuficiência de não ter que pegar no celular para pedir o mais seboso dos hambúrgueres da rede de fast food.

A indústria alimentar se desenvolveu com a nossa preguiça, evoluiu a partir da nossa passividade. Soube tirar proveito disso: como resposta à nossa letargia, deu-nos embalagens cheias de açúcar, de sódio, de gorduras trans.

Em nome de uma tal "comodidade", colocou funcionários (muitas vezes, por vezes mantidos em condições de trabalho pífias) a acelerar perigosamente suas motos para chegar às nossas casas e saciar nossa fome.

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Enquanto os governos não percebem que cozinhar precede a saúde pública — o que nos livraria de tantas doenças! — e que deveria ser matéria com provas semestrais na escola junto com a matemática e a gramática, temos que buscar o conhecimento por nossa conta.

Ainda bem que há (mais) programas de televisão, que há livros de cozinha, que há discussões sobre receitas para nos lembrar que cozinhar, portanto, é um (super)poder para nos ajudar a reconquistar o papel decisor sobre nossa alimentação.

Porque quando cozinhamos, entendemos não só o ato de comer, mas sobretudo o de nutrir, algo que determinou as relações afetivas na nossa sociedade em séculos e séculos de história. Algo tão potente e transformador que duvido que 10 anos de uma profecia descabida sejam capazes de apagar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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