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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Golpe, piratas e morte: famosa fraude marítima está há 11 anos sem punições

Raynald Lenieux/U.S. Navy/Divulgação
Imagem: Raynald Lenieux/U.S. Navy/Divulgação

Colunista do UOL

01/10/2022 04h00

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Na noite de 5 de julho de 2011, quando navegava da Ucrânia para a China, com um carregamento de 141 000 toneladas de óleo combustível, o superpetroleiro liberiano Brillante Virtuoso foi abordado por piratas no Golfo de Aden, na altura da costa do Iêmen.

Os bandidos prenderam a tripulação, sequestraram o navio e, quando ele parou, por pane nos motores, decidiram incendiá-lo, por meio de um detonador explosivo colocado na casa de máquinas. A tripulação só escapou com vida porque, após a fuga dos criminosos, conseguiu sair do navio em chamas, que ardeu até não mais poder ser recuperado...

Foi assim que o comandante do Brillante Virtuoso, o filipino Noe Gonzaga, relatou o ocorrido às autoridades e às companhias seguradoras do navio, na época avaliado em cerca de 80 milhões de dólares, além de outros 100 milhões pela carga que transportava.

Só que não era verdade, como logo suspeitaram as seguradoras do navio, e, mais tarde, também a corte inglesa que julgaria o caso, especialmente depois que um investigador contratado para averiguar o suposto ato de pirataria foi morto por uma bomba colocada em seu automóvel, duas semanas após o golpe - cujo mentor, ao que tudo indica, foi o próprio dono do navio, o armador grego Mario Iliopoulos.

Ou seja, o velho golpe do seguro. Mas aplicado de uma maneira bem mais complexa e surpreendente.

"O episódio do Brillante Virtuoso é um dos mais impressionantes e absurdos casos de fraude da história do transporte marítimo". E quem diz isso são dois especialistas no assunto.

Gerou até livro

Durante quase uma década, desde que tomaram conhecimento do caso, os jornalistas Matthew Campbell e Kit Chellel se debruçaram sobre o estranho, inédito e criminoso caso do falso ataque de pirataria ao petroleiro Brillante Virtuoso, 11 anos atrás.

Dessa obstinada vontade de descobrir a verdade à incansável busca por testemunhas que pudessem revelá-la, brotou o livro Dead in the Water: a True Story of Hijacking, Murder, and a Global Maritime Conspiracy ("Morte na Água: uma história verdadeira de sequestro, assassinato e conspiração marítima global), escrito por eles, recém-lançado nos Estados Unidos, mas ainda sem previsão para o Brasil.

Livro Dead in the Water - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Nele, os dois jornalistas narram, passo a passo, o engenhoso plano traçado pelo armador do navio e seus comparsas, para ludibriar as seguradoras — um roteiro digno de filmes de ação, que inclui falsos bandidos contratados por um sinistro proprietário, detetives abnegados que tentam desvendar o caso, tensos julgamentos na Justiça e o assassinato de um dos envolvidos em desmascarar a fraude.

Tudo isso, porém, real, o que torna a história do Brillante Virtuoso ainda mais impactante.

Como foi o golpe

Tudo teria começado quando, irritado com os seguidos prejuízos que aquele antigo e já precário navio vinha lhe causando, o armador grego Mario Iliopoulos, figura proeminente em seu país (tanto por ser dono de uma das principais empresas de ferries boats que fazem a famosa travessia entre Atenas e as turísticas ilhas de Santorini e Mikonos, a Seajets, quanto por ter se tornado, como hobby, um dos melhores pilotos de ralis de automóveis da Europa, atividade que lhe rendeu o apelido de "Super Mario", como no jogo de videogame), decidiu simular o sequestro e inutilização do petroleiro, a fim de receber a indenização das seguradoras.

Mario Iliopoulos - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Imagem: Instagram/Reprodução

Supostamente, ele já havia feito isso antes, duas vezes. E com relativo sucesso.

Em 1994, o Iron Antonis, um velho cargueiro que fazia sua última viagem, entre o Brasil e a China, antes de ser desmanchado e vendido como sucata, afundou estranhamente no meio do Atlântico, após partir ao meio, levando para o fundo do mar não só o valioso carregamento de minério de ferro que transportava, como, também, todos os seus 24 tripulantes.

Na ocasião, as autoridades gregas acusaram Iliopoulos de, no mínimo, negligência, por permitir que um navio em tão mal estado ainda navegasse. Mas nada foi provado contra ele.

Quinze anos depois, em agosto de 2009, Iliopoulos teria voltado a carga, com outro de seus navios deficitários: o Elli, que também afundou, após pegar fogo, próximo ao Canal de Suez - mas, desta vez, ao menos, sem vítimas.

O falso ato de pirataria contra o Brillante Virtuoso seria o terceiro golpe contra as seguradoras do empresário grego.

Desta vez, porém, o plano seria bem mais engenhoso, complexo e intrincado - um golpe de mestre, não fosse totalmente imoral e ilegal.

Uma rede complexa

Perder aquele grande, mas velho navio, de 275 metros de comprimento e tamanho de três campos de futebol, assegurado em cerca de 80 milhões de dólares, durante uma viagem na qual transportava uma carga avaliada em outros 100 milhões seria a melhor coisa que poderia acontecer ao endividado armador grego, que, pouco antes, havia contraído pesados empréstimos, a fim de renovar sua frota de cargueiros.

Com isso, ele não só se livraria dos seguidos prejuízos que o navio vinha lhe causando, como ainda receberia um bom dinheiro das seguradoras.

Foi o que ele tratou de fazer acontecer, através de uma engendrada rede, que incluiu, além do capitão e o engenheiro-chefe do navio, o também filipino Nestor Tabares (que, não por acaso, também desempenhara este papel no sinistrado cargueiro Elli, dois anos antes), falsos piratas e até uma grande empresa de salvatagem, cujo papel seria decisivo para o êxito da operação — como, de fato, foi.

"Equipe de segurança"

O local escolhido para a ação foi o tenso Golfo de Aden, na confluência da África com o Oriente Médio, onde, no início dos anos 2000, navios vinham sendo costumeiramente atacados por piratas da Somália (portanto, um novo ataque não despertaria suspeitas), e o ousado plano foi posto em prática na noite de 5 de julho de 2011, quando o Brillante Virtuoso navegava próximo à costa do Iêmen.

Sunset over the bay at Bir Ali, Shabwah Governorate, Yemen - © Santiago Urquijo/Getty Images - © Santiago Urquijo/Getty Images
Imagem: © Santiago Urquijo/Getty Images

Naquela noite, os 24 marinheiros do navio (todos também filipinos, mas que não sabiam do golpe prestes a ser orquestrado) foram avisados pelo capitão Gonzaga de que "uma equipe de segurança" chegaria para "escoltar" o petroleiro, durante aquela a travessia daquele trecho.

Horas depois, um pequeno barco, com meia dúzia de homens fortemente armados, se aproximou do petroleiro, e, pelo rádio, pediu que fosse baixada uma escada, para eles subirem a bordo.

Era o início da fraude.

Não eram piratas

Mesmo tendo sido avisado sobre a chegada da tal equipe, o marinheiro de plantão estranhou o pedido (será que a tal "escolta" seria feita a bordo do próprio navio?) e resolveu consultar o comandante, que estava em sua cabine.

De volta, ele recebeu a ordem de atender ao pedido dos homens, que, ao entrarem no navio, renderam e trancaram todos os tripulantes (exceto o comandante e o engenheiro-chefe) em uma das salas, enquanto "fingiam" sequestrar o petroleiro, já que não eram membros de nenhuma equipe de segurança, muito menos piratas - mas sim ex-policiais corruptos do Iêmen, que haviam sido contratados para atuar naquela farsa.

Os marinheiros permaneceram trancados por horas, até que ouviram uma explosão e começou a entrar fumaça no cômodo onde estavam.

Assustados, resolveram arrombar a porta e fugir, apesar do risco de toparem com os "sequestradores" do lado de fora.

Mas não havia mais nenhum "pirata" a bordo - só o comandante Gonzaga, ileso e grosseiramente amarrado com elásticos flexíveis a uma cadeira na sala de comando, como que simulando sua rendição pelos bandidos.

Fazia parte da farsa.

"Abandonar o navio"

Aqueles estranhos homens armados haviam ido embora sem levar nada, mas deixando para trás um princípio de incêndio na casa de máquinas (a mesma onde costumava ficar o engenheiro Tabares), gerado por aquela explosão que os marinheiros ouviram, que teria sido causada pelos invasores do navio - embora isso contrariasse totalmente o modus operandi dos piratas da região.

A ordem seguinte do capitão foi a de abandonar o navio, que, àquelas alturas, já exibia ameaçadoras labaredas sobre as toneladas do óleo inflamável que transportava.

Ele, então, pediu socorro pelo rádio (imediatamente atendido tanto pelo navio militar americano USS Philippine Sea, que estava na região, quanto por uma improvável empresa particular de salvatagem sediada no Iêmen, a Poseidon), e, juntamente com os 24 marinheiros filipinos, passou para os botes salva-vidas, abandonando o petroleiro - que, àquelas alturas, jazia estancado no mar, já que seus motores haviam parado de funcionar.

The Guided Missile Cruiser USS Philippine Sea Steams Off The Port Side Of The USS Enterprise, While Two F/A-18C "Hornet's" Prepare To Launch From The Flight Deck. Events In The Yugoslavian Province Of Kosovo Have Placed The Enterprise In A High State Of Alert Pending Possible U.S. And Nato Led Air Strikes.  (Photo By U.S. Navy/Getty Images) - U.S. Navy/Getty Images - U.S. Navy/Getty Images
Imagem: U.S. Navy/Getty Images

O resgate do grupo foi rápido. O navio americano chegou prontamente ao local e recolheu os náufragos.

Mas, quase ao mesmo tempo - e com uma eficiência raríssima de se ver, especialmente nos atrasados países do Golfo de Aden -, chegou também ao local um barco da Poseidon, que, ao abordar o navio em risco, logo tratou de tirar de lá o último tripulante que faltava: o engenheiro-chefe Tabares, que não era visto desde o início do "ataque".

Era o início da segunda parte da farsa: a da função contrária da equipe de salvatagem.

Fogo voltou a crescer

Quando os membros da empresa abordaram o navio e recolheram o engenheiro, tanto a fumaça quanto as chamas que vinham do interior da casa de máquinas haviam diminuído sensivelmente.

Contudo, em seguida, quando eles ainda estavam dentro do navio, ambas voltaram a crescer, até se tornarem impossíveis de controlar - razão pela qual o petroleiro foi definitivamente abandonado pela equipe de salvatagem, e ardeu até ser declarado como inutilizável.

O objetivo, enfim, havia sido atingido: o navio estava perdido.

Aumentaram, em vez de apagá-lo

A missão fora bem-sucedida. Especialmente a da equipe de salvatagem, cujo papel não era o de tentar salvar o navio, como seria de esperar de uma empresa do gênero, mas sim justamente o oposto disso: garantir que o fogo, que havia começado com a detonação, pelo próprio engenheiro (e não dos "piratas"), de uma bomba na casa de máquinas, aumentasse ainda mais e não se extinguisse espontaneamente, como quase ocorrera, o que colocaria toda a farsa por água abaixo.

Tempos depois, um dos agentes da Poseidon que esteve no navio naquela noite, admitiu ter estimulado o incêndio, abrindo alguns registros dos depósitos de óleo.

Não por acaso, a Poseidon fora a mesma empresa que, dois anos antes, participara das "tentativas de salvamento" do cargueiro Elli (aquele onde também trabalhava o engenheiro Tabares), igualmente propriedade de Mario Iliopoulos.

A parte mais trágica da história

 David Mockett - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em seguida, a empresa também seria envolvida nas suspeitas sobre o episódio mais trágico desta história: a morte do especialista inglês David Mockett, que havia sido contratado pelas seguradoras do navio para investigar o esquisito caso do Brillante Virtuoso.

Mocket, que vivia no Iêmen, foi morto por uma bomba colocada debaixo do assento do seu carro, quando já acumulava uma série de perguntas sem respostas, que remetiam diretamente a pesadas suspeitas de fraude.

Como estas:

  • Por que o comandante do navio autorizara o embarque daqueles homens sem checar suas identidades, numa área infestada de piratas?
  • Por que o engenheiro permaneceu a bordo, mesmo após a ordem de abandono do navio?
  • Por que os supostos "piratas" teriam desistido de sequestrar o navio e fugido sem levar nada?
  • Por que o fogo aumentou depois que a equipe de salvatagem entrou a bordo?
  • E - mais intrigante que tudo - por que os piratas teriam decidido incendiar o navio em vez de sequestrá-lo, como sempre faziam?
  • As perguntas do investigador assassinado continuam sem respostas até hoje.

Não havia tiros

Os verdadeiros piratas da Somália só recorriam aos incêndios nos navios que abordavam quando buscavam forçar o abandono do barco pela tripulação - não quando já tinham o total controle da situação, como no caso do Brillante Virtuoso.

Além disso, Mockett, que vistoriara os escombros do navio antes de ele ser rapidamente rebocado para um conveniente desmanche no Paquistão, estranhara o fato de que não havia marcas de tiros na embarcação, como sempre ocorria nos casos de pirataria, e pelo suposto "ataque" ter sido feito à noite, e não de dia, como os piratas sempre faziam, para ter mais visibilidade e facilidades na abordagem.

Por essas e outras, sua investigação tornara-se ainda mais valiosa para as seguradoras e cada vez mais incômoda para os envolvidos - a começar pela Poseidon, que operava no próprio Iêmen, onde ocorreu o assassinato, e o armador Mario Iliopoulos, que, após a morte do investigador, foi convocado a prestar depoimento perante a Corte Inglesa.

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Imagem: Facebook/Reprodução

Mas ele não admitiu o crime.

Foi preso e solto

O julgamento do caso, impetrado pelas seguradoras, na Inglaterra, em 2019, durou 52 dias e referendou todas as suspeitas de Mockett: o episódio do petroleiro havia sido um ato de fraude, não de pirataria.

Iliopoulos, que, na ocasião, foi qualificado pelo juiz como "instigador da conspiração", chegou a ser detido para interrogatório pela polícia inglesa, logo após o julgamento, mas foi solto rapidamente, porque negou tanto o golpe quanto a participação na morte do investigador inglês - um crime, por sinal, ainda tão impune quanto a própria mirabolante farsa encenada naquela noite, no Golfo de Aden.

A maior dificuldade em punir os responsáveis está na quantidade de países envolvidos no caso: o fato ocorreu no mar do Iêmen, envolvendo um navio com bandeira liberiana, dono grego e tripulação filipina, que transportava óleo russo comprado por chineses, e que vinda sendo investigado por um inglês - um cipoal de diferentes nações e leis, que atravancam os processos e impedem que eles avancem.

Ninguém foi punido

Com isso, até hoje, ninguém foi punido - nem pela fraude contra as seguradoras, nem pela morte do investigador.

O único consolo é que, embora nunca tenha sido considerado oficialmente culpado, o empresário dono do navio ainda não conseguiu receber o dinheiro do seguro que pleiteia - e que as seguradoras se negam a pagar, diante de tantas evidências de fraude.

Já a morte do investigador inglês parece condenada a ser esquecida e jamais esclarecida. Na prática, ele se tornou a única vítima do golpe.

No Brasil, um golpe que deu certo

Golpes contra seguradoras não são nenhuma raridade. Muito pelo contrário.

Existem em todas as áreas, desde que esse tipo de atividade foi criada.

No caso do transporte marítimo, no entanto, as fraudes encontraram um terreno ainda mais profícuo, dadas as características do ambiente marinho - desértico, gigantesco, de impossível monitoramento intenso.

Com isso, os golpes, desde cedo, se tornaram uma maneira prática e relativamente fácil de transformar velhos barcos em lucrativas fontes de receita.

A História está repleta de casos assim.

barco - Acervo popa.com.br - Acervo popa.com.br
Imagem: Acervo popa.com.br

No Brasil, um dos casos mais famosos de reconhecida fraude contra seguradoras de embarcações aconteceu no final do século 19 - e virou quase lenda na região -, quando um inescrupuloso capitão se uniu ao proprietário da embarcação, para dar cabo do navio de passageiros Sarita, no então ermo litoral do Rio Grande do Sul.

Aproveitando-se da sabida fúria do mar gaúcho, o comandante italiano Cosmo Marasciulo arremessou o navio na praia, de forma que todos pudessem ser salvos, menos o navio.

O golpe deu certo e eles foram indenizados.

Mas o que o capitão italiano não imaginava é que aquele falso naufrágio iria mudar sua vida para sempre, de uma forma surpreendente - clique aqui para conhecer esta história, que tem desdobramentos até hoje.

No caso do petroleiro Brillante Virtuoso, o objetivo dos golpistas também era lucrar com o fim do navio. Mas, até agora, o máximo que conseguiram foi gerar uma história de crime e impunidade, que já dura 11 anos.