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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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Velejador navega em rio poluído em SP antes de entrar numa fria pior ainda

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Colunista do UOL

09/03/2022 16h20

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Em uma antítese do que irá encontrar em sua próxima expedição, no desértico gelo do Ártico, o velejador e aventureiro paulista Beto Pandiani navegou hoje de manhã, com um barco similar ao que usará na viagem, um pequeno trecho do poluído Rio Pinheiros, que deságua no Rio Tietê, em plena capital de São Paulo.

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A cena de um bonito veleiro navegando no rio que já foi o mais poluído do Brasil — e que agora está sendo revitalizado —, no coração da maior cidade do país, chamou a atenção dos usuários da Avenida Marginal, a mais movimentada de São Paulo.

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Dois problemas ambientais

Mas o objetivo era este mesmo: divulgar a expedição, batizada de Rota Polar, que começará no final de maio, no Alasca, e, ao mesmo tempo, chamar a atenção das pessoas para a questão ambiental, que envolve tanto o rio paulistano quanto o gelo do Ártico, que vem sofrendo um processo gradual de derretimento, por conta do aquecimento global.

Beto Pandiani: navegador irá velejar novamente em um extremo gelado; inauguração simbólica de viagem se deu no rio Pinheiros, em São Paulo - Júlio Fiadi/Reprodução Instagram - Júlio Fiadi/Reprodução Instagram
Imagem: Júlio Fiadi/Reprodução Instagram

"Embora estejam em regiões opostas no globo terrestre e com problemas diferentes, tanto o rio de São Paulo quanto o gelo do Ártico fazem parte dos problemas ambientais do planeta e, por isso, resolvi apresentar a minha próxima expedição de uma forma diferente e impactante", explicou Beto Padiani, que, embora more na cidade de São Paulo, é um dos maiores navegadores brasileiros.

Aventureiro profissional

Com mais de 150 000 quilômetros navegados até hoje, sempre com um tipo específico de barco (pequenos catamarãs movidos à vela), Beto Pandiani é um dos mais experientes velejadores brasileiros e longe de ser um simples aventureiro - embora suas expedições sempre embutam altos riscos, como esta, que acontecerá no Ártico.

Entre outras façanhas, Pandiani já esteve na Antártica, atravessou o Atlântico e o Pacífico, o maior oceano do mundo, e navegou o continente americano inteiro, de cima a baixo, unido a Antártica ao Ártico, sempre com este tipo de barco - um pequeno catamarã aberto, muitas vezes sem sequer cabine, na companhia apenas de outro velejador.

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Pedalinho moderno

Para a expedição no Ártico, o novo barco de Pandiani, que está sendo finalizado nos Estados Unidos, terá duas novidades: uma minúscula "cabine", para dormir durante o percurso (que ele chama de "porta-luvas", porque só cabe o corpo e mais nada), e um sistema alternativo de locomoção por pedais, capaz de movimentar o barco - uma espécie de "pedalinho", que permitirá seguir avançando quando não houver vento suficiente para encher as velas.

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"Nosso combustível serão os ventos, a energia solar e a força humana", brinca Pandiani, que tem 64 anos e navega desde os 40.

Prazo para chegar

A novidade da locomoção também por pedais é uma necessidade, porque Pandiani terá um prazo limitado para realizar a travessia do Ártico, antes que comece o inverno no Hemisfério Norte, quando a navegação na região se torna impossível.

"Se a expedição não terminar até o início de setembro, ela terá que ser interrompida, porque o mar do Ártico congela e não dá para seguir em frente", avisa o velejador.

Companheiro de aventura nasceu no mar

Nesta expedição, a oitava de Padiani, todas de grande porte, ele terá como companheiro, uma vez mais, o francês/brasileiro Igor Bely, de 37 anos, que praticamente nasceu no mar, dentro do veleiro onde viviam seus pais, e cresceu frequentando as praias do Brasil.

O Igor sempre viveu no mar e é o companheiro perfeito para uma expedição dessas, onde a gente não sabe bem o que irá encontrar pela frente, porque ela é inédita para um barco pequeno como o nosso", diz Pandiani.

Do Alasca até a Groenlândia

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A nova expedição da dupla começará na segunda quinzena de maio, na esquecida cidade esquimó de Nome, no Alasca, e avançará, pelo labirinto de canais entre blocos de gelo do Círculo Polar do Ártico, até a Groenlândia, onde eles pretendem chegar antes de 10 de setembro, data limite para navegação na região.

Durante toda viagem, a dupla se alimentará apenas com comida liofilizada, ou seja, em pó, e fará paradas diárias para dormir, mas não em terra firme, porque a região é habitada por ursos polares.

"No barco, estaremos um pouco mais protegidos dos ursos", acredita Pandiani, que não se preocupa tanto assim com o gelo que domina a região, justamente por conta da questão ambiental.

"Infelizmente, nos últimos 20 anos, a cada verão, a Calota Polar do Ártico vem derretendo e recuando, e isso é preocupante", diz Pandiani, enfatizando o lado ambiental da expedição.

"Mas o próprio Rio Pinheiro, em São Paulo, que está sendo revitalizado e já está bem menos poluído do que antes, é prova de que ainda dá para fazer alguma coisa. Naveguei nele e sei o que estou dizendo", disse Pandiani, após o inusitado passeio de hoje pela manhã.

Expedição audaciosa

"É uma expedição audaciosa, sobretudo para um barco pequeno como o nosso", reconhece Pandiani. "Mas, como sempre faço, tudo está bem planejado, e uma equipe de filmagem irá nos encontrar em meia dúzia de pontos, ao longo do percurso, para produzir um documentário tanto sobre a viagem quanto sobre as mudanças climáticas, que tanto estão afetando o Ártico".

Além do documentário, o projeto de Pandiani também incluirá o lançamento de um livro, já que o foco também é a educação ambiental - daí a ideia de lançá-lo com uma navegação no rio mais morto do Brasil, embora ele venha sendo lentamente recuperado, através de uma ação conjunta entre empresas e a Sabesp, principal patrocinadora da expedição do velejador paulista.

No topo do mundo

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A travessia que Pandiani e Bely farão pelo Ártico, chamada de Passagem Noroeste, é uma rota mitológica para navegadores do mundo inteiro.

E, por suas dificuldades, um desafio e tanto para barcos pequenos, como será o da dupla brasileira.

Trata-se de uma espécie de labirinto, formado por estreitos canais entre enormes blocos de gelo, com cerca de 5 000 quilômetros de extensão, que liga o Atlântico ao Pacífico, no topo do mundo, entre a América do Norte e o Ártico.

Não há nada no caminho. Só gelo por todos os lados, o que a torna a Passagem Noroeste uma das áreas mais inóspitas do planeta.

Mas Pandiani não teme isso.

"Já estive na Groenlândia, com um barco parecido, e sei que o mais importante é respeitar a natureza e os nossos limites", diz.

Palco de terríveis tragédias

A fama da Passagem Noroeste antecede à própria descoberta deste atalho entre dois oceanos no teto do mundo, que, embora antigos navegantes já desconfiassem que existisse, só ocorreu 116 anos atrás, em 1906, após uma série de tentativas, quase todas com finais trágicos, com barcos e homens trancados no gelo do Ártico.

A pior de todas as tragédias envolvendo a Passagem Noroeste aconteceu na metade do século 19 e custou a vida todos os 128 ocupantes de dois navios de uma esquadra inglesa, chefiada pelo explorador John Franklin, enviada justamente para descobrir a passagem.

A saga de Franklin e seus homens resultou em um dos episódios mais dramáticos da história da exploração polar, com atos desesperados até de canibalismo — clique aqui para conhecer esta impressionante história, que, espera-se, jamais se repita.

Muito menos com exploradores modernos, como a dupla Beto Pandiani e Igor Bely.