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Ginástica do Fla muda rumo e vai do "acabou o dinheiro" ao ouro olímpico

Rebeca Andrade é ouro no salto - Maja Hitij/Getty Images
Rebeca Andrade é ouro no salto Imagem: Maja Hitij/Getty Images

Alexandre Araújo

Colaboração ao UOL, no Rio de Janeiro

05/08/2021 04h00

Do "acabou o dinheiro" ao pódio olímpico. A famosa frase de Márcio Braga, então presidente do Flamengo, proferida no início de 2009, referia-se ao investimento do clube nos esportes olímpicos e dava conta de uma crise que atingia a área, com consequências, inclusive, para a ginástica. De lá para cá, o Rubro-Negro superou os percalços financeiros e, agora, vê Rebeca Andrade gravar seu nome na história do esporte brasileiro e dos Jogos Olímpicos.

A atleta conquistou duas medalhas em Tóquio, com o ouro no salto e a prata no individual geral — ela ainda foi à final do solo e ficou com a quinta colocação. Rebeca, então, se tornou a primeira ginasta a conquistar uma medalha olímpica e a primeira brasileira a ir ao pódio duas vezes em uma mesma edição.

O clube, logicamente, celebrou bastante os feitos, mas nem tudo foram flores na caminhada, que teve debates quanto a valores investidos, um incêndio e até mesmo o fim da equipe adulta por um período.

Em janeiro de 2009, Márcio Braga, em uma coletiva de imprensa, afirmou que não havia mais recursos para manter a ginástica e, durante a explicação, falou: "acabou o dinheiro" — a declaração ainda reverbera nas redes em forma de meme. Na ocasião, o mandatário fez críticas ao escopo do repasse de verbas da Lei Piva, feito pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB), que não atingia os clubes formadores.

"Foi uma luta. Aquela frase foi porque, naquele momento, quem financiava o esporte olímpico e a ginástica do Flamengo era o futebol. E não tinha mais recurso, estava quebrado. Quando competiam, usavam o uniforme do Brasil, não do Flamengo. Tivemos, inclusive, um problema pelo fato de um atleta ter costurado um patrocinador em cima do nosso e acabamos multados em 10% do valor do contrato", lembra o ex-presidente.

"A diretoria se reuniu e decidimos não renovar os contratos com os atletas. Não dava para manter. Eles disputavam as competições pela confederação e o Comitê Olímpico não dava um tostão da arrecadação da loteria para os clubes que patrocinavam o esporte", disse Márcio Braga, que lembrou ainda uma batalha anterior nos bastidores por equipamentos doados pelo governo federal:

"No último ano do governo Fernando Henrique [2002], houve uma doação de aparelhos ao Flamengo. Até nisso eles [Confederação Brasileira de Ginástica] brigaram, alegando que o Flamengo não podia receber os equipamentos, e queriam mandar para Curitiba [CT da seleção]. Foi uma luta para manter aquela doação, demorou um ano".

Pouco depois, porém, surgiu uma alternativa para evitar o "fechamento" da ginástica. O Fla firmou um convênio com a Prefeitura de Niterói, que tinha à frente Jorge Roberto da Silveira (PDT), e nomes como Daniele e Diego Hypólito e Jade Barbosa permaneceram.

"Foi ali que começamos uma campanha para conseguir recursos da loteria, COB e governos. Fomos buscar outros clubes, como o Fluminense, Pinheiros, Minas Tênis, Sogipa, Grêmio Porto-Alegrense, que não é o do futebol, Corinthians e Vasco. Fizemos uma campanha nacional para tirar esses recursos e conseguimos. Foi criada uma associação de clubes (hoje CBC), que teve condições de receber e repassar esses valores", disse.

Márcio Braga (esq.) apoiou eleição de Rodolfo Landim no Flamengo - Divulgação/Flamengo - Divulgação/Flamengo
Márcio Braga (esq.) ao lado de Rodolfo Landim, atual presidente do Flamengo
Imagem: Divulgação/Flamengo

Em 2012, um susto. Um incêndio atingiu o ginásio Cláudio Coutinho, na sede do Rubro-Negro, onde funciona toda a estrutura de ginástica olímpica. Reformado com auxílio do Comitê Olímpico dos Estados Unidos, Confederação Brasileira de Clubes (CBC), uma quantia do próprio Fla, e doação do COB, o local foi reinaugurado em 2015.

Durante este período, as atletas conseguiram ser realocadas em um centro situado em Três Rios, cidade na região serrana do Estado do Rio, em parceria costurada por Georgette Vidor, que hoje está em nova passagem pelo Fla, como coordenadora técnica, e, à época, era coordenadora da seleção.

"Eu fui deputada estadual e tinha alguns projetos sociais. Tinha a Flavinha, a Rebeca e umas seis meninas do Flamengo que, na verdade, eram a renovação da seleção. Quando houve o incêndio, fiquei desesperada, porque não tinha onde treinar essas pequenas. Então, levamos para Três Rios, em uma parceria com a prefeitura", lembra.

"Atualmente, coordeno os dois [no Flamengo], masculino e feminino. Mas o que aconteceu com o masculino [após o incêndio]? Se perdeu. Além dos melhores terem ido embora, não tinha ginásio masculino no Rio. O Flamengo treinava na UERJ, e tudo mais, mas sem infraestrutura. O masculino caiu de uma forma abrupta, os atletas bons ficaram apoiados com a seleção. Como eu coordenava o feminino [do COB] e tinha esse projeto, conseguimos salvar", completou.

Pouco depois, outro baque. Em 2013, primeiro ano de mandato de Eduardo Bandeira de Mello, em meio à crise financeira, e ainda sem as Certidões Negativas de Débito (CNDs) àquela altura — que facilitaria a captação de recursos públicos —, o clube decidiu acabar com as equipes adultas de algumas modalidades, como natação, que contava com Cesar Cielo, judô e ginástica olímpica.

Georgette Vidor retornou ao Flamengo em janeiro de 2020, como coordenadora técnica - Marcelo Cortes / Flamengo - Marcelo Cortes / Flamengo
Georgette Vidor retornou ao Flamengo em janeiro de 2020, como coordenadora técnica
Imagem: Marcelo Cortes / Flamengo

Algumas jovens promessas, porém, foram mantidas. Dentre elas, Rebeca, que, na ocasião, estava na categoria juvenil.

Em março de 2015, a vice-presidência de Esportes Olímpicos do Rubro-Negro anunciou que os esportes subordinados à pasta alcançaram a autossuficiência e poderiam ser mantidos sem prejuízos, através de patrocínios e parceiros.

Na edição de Tóquio, o Flamengo teve, com exceção do futebol, oito representantes: além de Flávia Saraiva e Rebeca Andrade, na ginástica, as nadadoras Larissa Oliveira, Gabrielle Roncatto e Nathalia Almeida, Isaquias Queiroz e Jacky Godman da canoagem, e Ana Cristina, do vôlei.

Resultados das 'estrelas' mudaram investimento

Georgette Vidor lembra que os resultados mais chamativos de alguns nomes da ginástica, como Daniele Hypólito, Daiane dos Santos e Jade Barbosa, foram fazendo com que o investimento na modalidade fosse crescendo e, consequentemente, diminuindo a dependência de recursos do futebol.

"O Brasil foi melhorando, inclusive, a parte econômica do país. Mas, apesar de sermos a oitava maior economia do mundo, somos um país pobre. Por conta disso, o esporte sempre viveu, e acho que vive bastante até hoje, às custas de um sistema de clubes. Então, quando o clube estava bem, ok, mas quando, sobretudo o futebol caía, era um transtorno danado, porque a gente ia no barco", disse.

"A confederação [de ginástica] fez um projeto com o COB porque apareceu a Daniele, já pequenininha, a Jade, ainda menorzinha, mas com um super talento, a Daniane... Então, a confederação quis apostar em estrutura de seleção permanente, trouxe técnicos estrangeiros, como o Oleg Ostapenko e Irina Ilyashenko, da Ucrânia"

Ostapenko morreu no último dia 3, em Kiev, na Ucrânia, aos 76 anos. Ele estava internado desde o início de maio, com problemas pulmonares e renais.

Tensão pré-Olimpíada

Coordenadora técnica da ginástica do Flamengo desde janeiro de 2020, em nova passagem pela Gávea, Georgette acompanhou de perto a batalha de Rebeca para conseguir a classificação a Tóquio. A atleta conviveu com lesões e as dúvidas por conta da pandemia.

"A Rebeca teve muita resiliência nem sua recuperação. Ela se machucou antes do Mundial de 2019, em Stuttgart, e não houve tempo para a recuperação. As coisas foram acontecendo e houve a definição de que tentaria a classificação por aparelhos. Mas foram cancelando as competições por causa da pandemia e foi ficando um sufoco para a classificação. Até a transferência da Olimpíada, achava-se que não ia ter Copa do Mundo e que ela não ia conseguir se classificar".

Além da pandemia, houve também algumas questões em relação à recuperação. Todas, porém, superadas a tempo de Rebeca chegar a Tóquio como grande esperança de medalha.

"Ela estava treinando e quando começava a fazer alguns exercícios mais difíceis, o joelho inchava e ela tinha de dar uma parada. Para a Rebeca, foi primordial [adiamento da Olimpíada]. Ela cresceu tecnicamente e conseguiu mostrar aquela beleza no Pan, aqui no Brasil. Ali ela fez uma pontuação muito alta, uma soma que daria uma chance verdadeira de medalha".