Agora vai?

Clubes brasileiros agem em maior crise institucional da CBF desde o Fifagate e ensaiam bases para nova liga

Igor Siqueira, Marcel Rizzo, Marcello de Vico e Ricardo Perrone Do UOL, no Rio, em Fortaleza e em São Paulo Alexandre Schneider/Getty Images

Dezenove dos 20 clubes que disputam a elite do Campeonato Brasileiro apresentaram à CBF na terça-feira a intenção de criar uma liga independente para organizar a competição — só o Sport ficou de fora, mas porque está sem presidente, não por desacordo com os planos.

A ideia, externada em comunicado oficial, serve como pressão em um momento de vácuo de poder talvez inédito na história da Confederação Brasileira de Futebol.

Comunicar a decisão da criação imediata de uma liga de futebol no Brasil que será fundada com a maior brevidade e que passará a organizar e desenvolver economicamente o Campeonato Brasileiro de Futebol. Além dos clubes signatários, os clubes da Série B serão convidados a integrar a liga."

Desde sexta-feira, os clubes se organizam para tentar aproveitar o afastamento de Rogério Caboclo da presidência da CBF — o dirigente é acusado por uma funcionária de assédio sexual. Querem, principalmente, participar da articulação da sucessão, já que a avaliação é que o mandatário não retornará ao cargo.

A crise da CBF abre a oportunidade histórica de emplacar a liga sob controle dos clubes, em movimento que fracassou em algumas ocasiões — geralmente em razão de disputas entre seus próprios dirigentes.

Será que desta vez a coisa anda, acima de vaidades e interesses? Muito além da modernização do Brasileirão, está em discussão o poder do futebol nacional nos próximos anos —incluindo o jogo milionário dos direitos de televisão.

Alexandre Schneider/Getty Images

A decisão de formação da liga é irreversível. Foi uma decisão unânime de não voltar atrás nessa pretensão. A partir da formação da liga, a CBF continua papel fundamental na organização de todas as competições, exceto o Campeonato Brasileiro. A gente quer ter autonomia para organizar a competição, mas não precisa virar de costas para a CBF de uma hora para outra já que nosso movimento não é contrário à CBF, é a favor de uma nova forma de organizar o campeonato

Guilherme Bellintani, presidente do Bahia, ao UOL Esporte

Fernando Alves/AGIF

Direitos, VAR e calendário

Existem três pontos-chave que os clubes acreditam que uma nova diretoria da CBF deveria priorizar: articular em Brasília uma lei que dê ao mandante dos jogos o direito de transmissão para a TV, mais transparência no uso do VAR e um calendário que não prejudique os clubes com desfalques durante datas Fifa e jogos da seleção.

"Não existe cabeça da liga. Acho que se houve uma coisa muito positiva é a criação equilibrada de todos os clubes. Amadureceu a partir do momento em que todos entregaram. Foi um avanço importante. Não tem liderança. Não é por aí que se começa. Vamos começar por premissas, temas, debates. Claro que vai ter uma comissão para debater temas específicos, estatuto, parte comercial, calendário...", afirmou Guilherme Bellintani, presidente do Bahia.

Na mesa do grupo de presidentes estará, também, o próximo ciclo de negociação dos contratos de TV, que valerão a partir de 2025. A intenção é amadurecer o conceito da liga para turbinar as cifras nos pacotes a serem oferecidos ao mercado para quem se interessar.

Entre as metas também estão um calendário racional, espaço para amistosos e não marcar partidas que concorram com as datas Fifa. E, como os clubes estariam no controle das negociações contratuais, outra ideia é alavancar uma linha de licenciamento vinculando competição e times.

Quando começa essa liga? A estruturação será iniciada imediatamente. Já ao longo dos próximos dias, temos reuniões justamente para ajustar. Quando ela começa a ter impacto real, a organizar de fato as competições? A gente preferiu não determinar porque o processo deve ser construído com toda o planejamento. Sabemos que o projeto começa imediatamente, mas ainda não temos uma data de início das competições geridas pela liga do futebol brasileiro que sequer tem nome

Guilherme Bellintani , presidente do Bahia

Lucas Figueiredo/CBF Lucas Figueiredo/CBF

"Caboclogate" ajuda movimento

Mesmo com três dos últimos cinco presidentes acusados de corrupção, a CBF nunca viveu um momento tão frágil politicamente como agora. Nas transições de Ricardo Teixeira para José Maria Marin, e depois para Marco Polo Del Nero, com o Fifagate (esquema de corrupção que levou dezenas de cartolas, inclusive Marin, à prisão, contado nos episódios do podcast Futebol Bandido 1 - Ricardo Teixeira, que mandou no futebol por 23 anos e 2 - Nos anos Havelange, cultura de corrupção chegou à Fifa), sempre houve uma sucessão coordenada, com as peças se movendo de uma maneira que não deixasse brecha para rebeliões. Agora, não.

Rogério Caboclo já vinha desgastado em razão da insatisfação na seleção masculina com o improviso da Copa América no país em tempos de ameaça do coronavírus. Para piorar, o cartola acabou afastado do cargo temporariamente. São grandes as chances de essa suspensão se tornar permanente, devido a uma acusação de assédio moral e sexual por parte de uma funcionária da entidade, em escândalo com direito a áudios de conversas inadequadas expostos pela imprensa.

O caso está nas mãos do Comitê de Ética da confederação e, neste momento, a direção da casa fica para um dos vices, Antônio Carlos Nunes, o Coronel Nunes, considerado uma figura sem vigor político para lidar com o novo movimento.

Se os clubes conseguirem maior poder na CBF, é possível, inclusive, que a liga se confirme como uma manobra de pressão. O discurso da cartolagem ao deixar a sede da entidade no Rio, depois de apresentarem as demandas, foi de que "não é um movimento de ruptura".

"Primeiro, acho que deve ressaltar que a liga foi decidida pelos 19 clubes da Série A e os da B também foram convidados. Não é uma ruptura, é um desejo natural dos clubes, refletidos há muito tempo e que estava maduro para avançar. A liga existe em todos os países e no Brasil não pode ser diferente", afirmou Guilherme Bellintani, presidente do Bahia.

Dentro da cúpula atual da CBF, que se reuniu após o encontro com os clubes, a expectativa é deixar esse assunto engavetado até que o afastamento de Caboclo se concretize em definitivo. Já fora da entidade, o sentimento foi de que o movimento da liga deixou a direção da entidade atordoada.

Lucas Figueiredo/CBF

Clubes querem força na eleição da CBF

O grande interesse do movimento dos clubes é ter um papel maior na sucessão da presidência da CBF. Eles querem participação igualitária na eleição, já que atualmente seus votos têm peso menor do que o das federações. Uma mudança estatutária feita pelas federações determinou que as entidades têm peso três na escolha do presidente da CBF. Já clubes da Série A têm peso dois e os times da Série B, peso um.

Com 81 votos contra 60, as federações podem estabelecer maioria em torno de uma candidatura sem necessidade de um acordo com os clubes.

Em seu comunicado, os clubes exigem que a CBF estabeleça a igualdade de votos entre os clubes e federações. Ou seja, que cada um tenha peso um na eleição. Além disso, cobram a queda da cláusula de barreira pela qual uma chapa precise ter apoio de oito federações para ser inscrita. Com isso, os clubes poderiam emplacar o presidente sem necessitar do apoio das federações.

Visionhaus/Getty Images

Inspiração europeia

A base dos planos da liga brasileira está na Europa. Por lá, os principais campeonatos nacionais são organizados por ligas e os clubes, por meios de empresas criadas e um presidente ou CEO nomeados, são os responsáveis pelos torneios nacionais. As federações nacionais organizam divisões inferiores e ligas amadoras, além de cuidarem das seleções.

A inglesa Premier League, a mais poderosa de todas, faturou em 2019, antes da pandemia, 5,8 bilhões de euros. O dinheiro fica com os clubes e a distribuição leva em conta fatores esportivos (colocação no campeonato), mas também alcance da marca e interesse nos direitos de mídia.

Se os nacionais estão com os clubes, os continentais estão sob a guarda da Uefa, a União Europeia de Futebol. E a tentativa de criar uma liga independente para ocupar o lugar de Liga dos Campeões e Liga Europa ruiu em dois dias, no fim de abril.

Lançado em um domingo por 12 dos clubes mais ricos do continente, a repercussão foi tão negativa, com mídia e torcedores criticando o que chamaram de elitismo do futebol europeu, já que refletiria nas ligas nacionais, que na terça-feira mais da metade dos fundadores já tinha abandonado a ideia encabeçada por Real Madrid (ESP) e Milan (ITA).

A criação de uma liga tem o objetivo de maximizar receitas, ofertar um produto de maior qualidade e maiores vantagens comerciais. Se os alemães, espanhóis e italianos fazem isso, nós brasileiros também podemos fazer. Essa mudança também é positiva para a CBF, que terá um processo eleitoral mais democrático e participativo, com melhorias na Série A."

Marcelo Paz, presidente do Fortaleza

Apu Gomes/Folhapress

Ligas já fracassaram em outros momentos

A tentativa de insurreição não é uma novidade. De tempos em tempos, os clubes de futebol do Brasil ameaçam se organizar para tomar as rédeas de seu principal campeonato, o Brasileirão. Em 1987, houve um movimento que lembra muito o que acontece agora pela mesma razão: fragilidade da CBF. Naquele ano, a entidade vivia uma crise financeira (o que não há agora) e institucional com o presidente, Octávio Pinto Guimarães, e o vice, Nabi Abi Chedid, em guerra pelo comando.

Desconfiados dos rumos da CBF, os principais clubes do país queriam um campeonato enxuto. O Brasileirão, até por incentivo do governo militar, havia exagerado no número de participantes a partir dos anos 1970 e houve torneios com mais de 100 participantes.

Foi então fundado o Clube dos 13, uma espécie de liga que organizou a Copa União em 1987, que até hoje é motivo de polêmica sobre quem de fato foi o campeão brasileiro naquele ano: o Flamengo, que ganhou o chamado Módulo Verde, onde estavam os integrantes do Clubes dos 13, ou o Sport, que levou o Amarelo — havia previsão no regulamento inicial que os vencedores se enfrentassem para definir o campeão, mas os cariocas não aceitaram jogar.

Em 2000, o Clubes dos 13 voltou a organizar o Brasileirão, batizado de Copa João Havelange. Mas o motivo foi outro: a CBF estava com uma pendenga judicial com o Gama, que não aceitava o rebaixamento em 1999.

O Clube dos 13, que havia se tornado o representante dos clubes nas negociações de direitos de transmissão, implodiu em 2010, por ação da CBF, mas em 2015, com nova crise institucional da entidade depois das revelações de casos de corrupção que levaram o ex-presidente da confederação José Maria Marin à prisão, um novo embrião de liga foi criado.

Outra tentativa foi a Primeira Liga, que tinha clubes de Rio de Janeiro, Minas Gerais e da região sul, que organizou duas edições, em 2016 e 2017. Sem conseguir datas com a CBF, enfrentou sempre o calendário apertado e, sem os paulistas, nunca teve força real para criar um movimento sólido.

PAULO PAIVA - AGIF/ESTADÃO CONTEÚDO

Blefe ou mudança concreta?

A ideia é tomar conta da organização do Brasileiro, mas serve como pressão dos clubes contra a CBF. A brecha está sendo usada pelos clubes para barganhar influência. Se a confederação brasileira sinalizar, por exemplo, que os clubes participarão da articulação de escolha do sucessor de Rogério Caboclo e tenham controle maior sobre calendários e outras receitas do campeonato, a liga se manterá de pé? É uma possibilidade a ser analisada.

Historicamente, os clubes são desunidos. Eles se juntam em momentos específicos, pontuais, como para criticar quando perdem jogadores para as seleções sem o campeonato parar. No entanto, interesses distintos costumam os afastar na sequência — como um erro de arbitragem que leva os cartolas a se atacarem publicamente. Para criar uma liga, será preciso colocar rivalidades de lado de uma maneira, até hoje, inédita.

A geração de Carlos Miguel Aidar (São Paulo) e Márcio Braga (Flamengo) não conseguiu mudar o jogo nos anos 80, antes mesmo da criação da Premier League na Inglaterra. Décadas depois, a geração de Alexandre Kalil (Atlético-MG) e Andrés Sanchez (Corinthians) fracassou em se entender e perdeu nova oportunidade, então com a CBF de Ricardo Teixeira movendo peças em segundo plano.

Torcedores, emissoras de TV e toda a comunidade do futebol nacional acompanham o novo ensaio de liga. Será que o modelo brasileiro, que contempla os interesses de federações e dirigentes estaduais, está para ruir? A bola está com os clubes.

Pedro Martins/UOL Pedro Martins/UOL

+ Especiais

Almeida Rocha/Folhapress

Clube dos 13: a história da "Superliga brasileira" que mudou nosso futebol e foi implodida pela TV.

Ler mais
Mateus Bonomi/AGIF

Copa América "express" vira ringue político no Brasil e pressiona seleção por posicionamento.

Ler mais
ALAN RONES/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO

Gabigol e seleção demoraram a se encontrar, mas agora têm chance de um relacionamento sério.

Ler mais
Pool via REUTERS

Eurocopa começa mais poderosa do que nunca e deve estabelecer o que esperar para o Qatar 2022.

Ler mais
Topo