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Um ano após 'tiro no pé' do SJTD, Celsinho vê rótulo por denunciar racismo

Gabriel Carneiro e Vanderlei Lima

Do UOL, em São Paulo

27/07/2022 13h00

Faz mais ou menos um ano que o nome do meio-campista Celsinho ganhou as manchetes do noticiário esportivo. Mas o assunto não foram seus 14 jogos e as participações em gols no Campeonato Brasileiro da Série B que ajudaram o Londrina a não ser rebaixado. No intervalo de poucos dias, ele foi vítima de quatro diferentes casos de injúria racial.

O episódio que mais repercutiu ocorreu num jogo entre Londrina e Brusque, em 28 de agosto de 2021. "Vai cortar esse cabelo, seu cachopa de abelha", disse o presidente licenciado do Conselho Deliberativo do Brusque, Júlio Antônio Petermann. Comentários a respeito do cabelo crespo de pessoas negras são considerados como injúria racial.

Celsinho denunciou a ofensa, a arbitragem relatou em súmula e o time catarinense foi condenado à perda de três pontos na Série B, além de multa de R$ 60 mil e da suspensão mais multa financeira por parte do dirigente. Passados 55 dias, o recurso do Brusque sobre a decisão foi aceito pelo STJD e os pontos acabaram devolvidos. Essa reviravolta aconteceu na mesma semana em que se celebra o Dia da Consciência Negra, data que virou símbolo da mobilização antirracista.

Mesmo depois de tanto tempo, o meio-campista de 33 anos ainda lamenta que o caso tenha terminado assim: "O senhor [Júlio Antônio Petermann] confessou o crime no primeiro julgamento, disse que de fato falou para machucar. Daí o Brusque perde os pontos. Nós já tinhamos dado como vitória, não pelos pontos, mas pela punição. E depois, numa data tão importante, acabam dando um tiro no pé. [STJD] Tinham tudo na mão para fazer a coisa correta, certa, e eles acabam dando um tiro no pé."

Ao lado de Marcelo Carvalho, que é idealizador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Celsinho foi convidado da edição mais recente do UOL Entrevista Esporte e disse que se sente rotulado por ter denunciado seguidos casos de racismo — além do 'caso Brusque', ele foi ofendido por profissionais da mídia esportiva. Sempre por causa do cabelo.

Muitas pessoas mandavam: 'Você de novo?', 'Só acontece com você?', 'Outra vez?'. Eu reforçava: 'Isso, sou eu de novo'. E toda vez que acontecer vou botar minha cara aqui e vou falar. Foram duas vezes em Goiânia, em Belém e em Brusque. Se tivesse outras vezes eu estaria lá de novo. As pessoas falam que me vitimizo e isso é um absurdo. Eu sofro os atos, as pessoas me xingam e discriminam e eu me vitimizo ainda? Tem muitos que não entendem e não querem entender o caso e dizem que eu sou o problema. Mas isso não interfere em nada, eu falo por mim e por inúmeras pessoas que se sentem representadas pela minha voz."

Celsinho - Ricardo Chicarelli Londrina EC - Ricardo Chicarelli Londrina EC
Celsinho faz gesto antirracista após marcar gol contra o Coritiba pelo Londrina, em 2021
Imagem: Ricardo Chicarelli Londrina EC

Julgamento sem negros incomodou

A sessão do STJD que puniu o Brusque com a perda de pontos — que depois teve o resultado revertido — rolou de forma virtual no dia 24 de setembro do ano passado. Celsinho marcou presença junto com seu advogado Eduardo Vargas. Eram as únicas pessoas negras nas 17 telas.

"O julgamento virtual me incomodou e me incomodou muito. No momento em que nós entramos na sala eu desligo meu áudio, olho para o lado e digo: 'cara, só tem eu e o Eduardo de negros'. Se nós estamos tratando de um assunto em relação a racismo, ou injúria como eles falaram, porque não foi um ato grave, uma barbaridade, como não temos pessoas negras ali? Como eles vão sentir na pele aquilo que eu senti? Como? Não, levaram simplesmente para o lado do esporte e não se colocaram no meu lugar como pessoa. Aquilo para mim foi um absurdo", desabafa.

Julgamento - Reprodução - Reprodução
Imagem do julgamento virtual de Celsinho no STJD em setembro de 2021
Imagem: Reprodução

Marcelo Carvalho também nota uma sensação de impunidade sobre episódios de racismo no futebol brasileiro que o 'caso Brusque' criou, inclusive por causa do episódio do julgamento: "O tribunal disse que caso do Celsinho não foi grave. Então o que é um caso grave? Precisamos pensar na estrutura: quantas pessoas negras tinha no julgamento do Celsinho? Quando o tribunal diz que não foi grave, não foi grave para as pessoas brancas que estavam lá. Se a gente perguntar ao Celsinho, foi. Para a família, foi. Para mim, foi. Para a comunidade negra, foi. Por que a gente sempre é ofendido com ofensas ligadas à cor da pele e nossos traços, cabelo, boca, nariz, religião. Toda ofensa é grave porque resulta no que a gente vive no Brasil, que é o genocídio da população negra."

Casos São Paulo x Flu e Bakayoko

Dois episódios recentes colocaram o tema do racismo novamente em discussão no futebol. No Brasil, dois torcedores do São Paulo foram acusados de fazer gestos racistas de imitação de macaco a um torcedor do Fluminense durante a partida entre as equipes válida pelo Campeonato Brasileiro, no último dia 17. O são-paulino negou, disse que tentava imitar uma pessoa forte, porque o torcedor adversário era "bombadão".

Celsinho não poupou palavras sobre o assunto no UOL Entrevista Esporte.

Torcedor - Reprodução/Twitter - Reprodução/Twitter
Torcedor são-paulino foi filmado no Morumbi fazendo suposto gesto racista para a torcida do Fluminense
Imagem: Reprodução/Twitter

Eu vi as imagens e sou uma pessoa bem transparente, bem clara. Aqueles gestos não eram sobre pessoas obesas ou fortes, não. Foi um ato de racismo mesmo, ele imitou um macaco, ele tentou agredir o torcedor do Fluminense. Isso é inadmissível, não podemos deixar que passe despercebido. E o bom é que as pessoas estão criando voz, estão denunciando, e de pouquinho em pouquinho, com esse trabalho de formiguinha, vamos conseguir fazer com que isso não passe impune. O quanto mais falarmos, mostrarmos essas imagens, tocarmos no assunto, é importante. Até chegar ao ponto em que a justiça seja feita. Por que a justiça não é feita e eles continuam fazendo. Até o momento em que tivermos uma punição de fato severa para repensarem."

Outro caso foi no futebol internacional. O meio-campista Tiémoué Bakayoko, do Milan, sofreu um enquadro violento da polícia italiana. Os agentes da cidade de Milão foram acusados de racismo pela forma com que abordaram e revistaram o jogador. A intervenção parou assim que reconheceram que ele era famoso, o que leva Marcelo Carvalho à seguinte reflexão: o que poderia acontecer se Bakayoko não fosse uma estrela futebol?

"É uma cena infelizmente comum no Brasil e no mundo. Mas hoje em dia com smartphones gravamos e expomos. Muita gente vai questionar: 'Pô, o que tem demais nisso?'. As pessoas precisam entender que ser parado em blitz com arma apontada para o seu corpo é algo muito pesado, impacta demais na vida das pessoas. E que nós negros estamos nessa situação de vulnerabilidade. Essa violência acontece todo dia. Mas e se não for uma pessoa famosa? Aí temos a violência e aquilo que o Emicida sempre repete: quando pessoas negras morrem, precisamos colocar que elas foram assassinadas. Uma abordagem truculenta pode gerar uma morte. Quando as pessoas imaginam que negros são sempre suspeitos, também pode resultar numa morte."

Marcelo Carvalho e Celsinho também refletiram ao longo da entrevista sobre formas de punição a atos racistas. Ambos concordam com a punição direta ao agressor, em forma de prisão ou multa financeira, e também aos clubes cujos torcedores cometam esses atos dentro de ambientes esportivos. "A partir da punição esportiva, o clube vai tomar atitude para educar e conscientizar seu torcedor. Se não punirmos os clubes eles vão dizer sempre que o problema não é deles", diz Marcelo Carvalho.

Marcelo - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Marcelo Carvalho comanda o Observatório da Discriminação Racial do Futebol desde 2014
Imagem: Reprodução/Instagram

Celsinho completa: "A punição que eu queria é que todas essas pessoas fossem presas, que a justiça funcionasse. Não só deixar duas, três semanas, como o torcedor argentino que foi liberado. Tem que ter um tempo que realmente valha a pena, senão eles vão continuar fazendo. Disse para o meu advogado que todo tipo de punição possível dentro da lei eu gostaria que esses agressores pegassem. E para quem sofre com isso, não se calem, falem, procurem alguém, denunciem, expressem de alguma maneira. Só assim vamos conseguir passo a passo resolver esse problema."

Celsinho procura novo clube

Aos 33 anos, o meio-campista está disponível no mercado da bola. Apesar de se sentir rotulado pelas denúncias de racismo, Celsinho não acha que isso atrapalhe na sua busca por um novo clube. Marcelo Carvalho discorda.

O último jogo dele foi em março, pela Série A2 do Campeonato Paulista, pelo Lemense — foi seu primeiro clube após a saída do Londrina no fim do ano passado. O planejamento do jogador com passagens por Portuguesa, Fortaleza, Paysandu e clubes da Rússia e de Portugal é acertar com um clube nas próximas semanas.

Celsinho - Divulgação - Divulgação
Celsinho em ação pelo Lemense na Série A2 do Campeonato Paulista de 2022
Imagem: Divulgação

"O futebol é tudo o que eu busquei na minha vida, desde criança. O estádio, a atmosfera de entrar, chegar. É um lugar onde eu me sinto feliz, amo, quero sempre estar. E as pessoas estão cometendo esse crime dentro de um espaço em que sou apaixonado por estar. Não é só meu lado físico, cor, cabelo, enfim, estão mexendo com meu sonho, onde eu sempre quis entrar. Isso é inadmissível, não vou ao estádio para ser chamado de macaco, cabelo de cachopa, ninho de cupim, coisa imunda. Eu vou para o estádio para ser feliz, fazer o que amo fazer. Não vou desistir, a luta continua."

E onde estiver, vai de coroa.

O que essas pessoas queriam é que o Celsinho cortasse o cabelo. Esse é o objetivo da sociedade, que a gente se comporte como eles querem. E o Celsinho para mim é um grande exemplo a ser seguido primeiro porque não se calou, e segundo porque não fez isso que a sociedade queria. Ele manteve o black power dele. É um simbolo importante para os nossos meninos, que podem ser o que quiserem e podem andar, vestir e se comportar como quiserem. Não podemos ter medo de expressar nossa cultura."
Marcelo Carvalho, idealizador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol