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Vida de operários no Qatar parece escravidão moderna, diz inspetor da Copa

Ambet Yulson, secretário-geral da Internacional de Trabalhadores da Construção Civil e Madeira (ICM) - Divulgação
Ambet Yulson, secretário-geral da Internacional de Trabalhadores da Construção Civil e Madeira (ICM) Imagem: Divulgação

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

15/07/2022 04h00

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Quando o Qatar foi escolhido como sede da próxima Copa do Mundo, que começa em novembro, a comunidade internacional lançou sinais de alerta sobre a condição dos trabalhadores que atuariam nas obras dos estádios e da infraestrutura do país. Presidente de um sindicato internacional de operários, o filipino Ambet Yuson fez parte de 25 inspeções no Qatar desde 2017. Nessas visitas, conseguiu ver de perto como vivem e trabalham centenas de milhares de trabalhadores, a maioria imigrantes de países vizinhos.

Em uma entrevista ao UOL Esporte em São Paulo, onde participou de encontros com sindicalistas brasileiros, Yuson reconheceu avanços conquistados pelos trabalhadores no Qatar, mas destacou que muitos ainda vivem em condições semelhantes à escravidão.

"Muitas pessoas vão pro Qatar, pagam as taxas de recrutamento, chegam lá e não recebem salário. Vi centenas de casos de operários que ficaram dois anos sem receber. O que eles vão comer?", afirmou o secretário-geral do ICM, a Internacional de Trabalhadores da Construção Civil e da Madeira. "Esse é um caso que vai contra a convenção internacional sobre trabalhos forçados. Isso é escravidão moderna."

O Comitê Supremo do Qatar anunciou que todas as obras exigidas pela Fifa, incluindo a dos estádios, já foram entregues, restando apenas a conclusão de detalhes decorativos. O ICM e outros sindicatos internacionais agora querem que as autoridades criem um "centro do trabalhador", onde os operários que trabalham no país possam ir pra conhecer e reivindicar seus direitos, já que o governo proíbe a sindicalização. "Eles querem um lugar onde eles possam se ajudar. Esse pode ser um legado para o Qatar", diz Yuson.

UOL Esporte: Quais são os principais problemas que os trabalhadores imigrantes enfrentam no Qatar?

Ambet Yuson: Nos últimos anos o Qatar foi o maior canteiro de obras do mundo. Quando fomos lá, vimos muitos atrasos salariais, problemas com o calor, porque trabalhar lá no verão é muito complicado, problemas com a segurança dos trabalhadores que atuavam em lugares muito altos. Aconteceram algumas mortes por causa disso. Havia condições de vida insalubres nos alojamentos, mais de dez pessoas em cada quarto. A comida era ruim. E tinha o sistema 'kafala', que obrigava o trabalhador a entregar seu passaporte pras empresas. Quando seu passaporte é confiscado você não tem mais direitos. Eles podem te manipular, já que você não consegue ir pra casa sem permissão, você não pode mudar de emprego sem permissão.

Essa foi a situação que vimos em 2010, 2011. Isso era uma violação dos padrões internacionais de trabalho. Nós reclamamos com a Fifa, na época era o Joseph Blatter, e o Blatter disse: 'Eu não sou responsável por isso'. Então fomos na OCDE, a organização de países ricos e registramos uma queixa contra a Fifa, porque se você é o organizador, você é o responsável.

Qatar - EFE - EFE
Trabalhadores imigrantes em obra da Copa de 2022, no Qatar
Imagem: EFE

Hoje eu posso dizer que a situação melhorou, mas não o suficiente. Houve mudanças na construção dos estádios, mas no resto do país não. Houve melhoras por causa da nossa pressão, mas não há garantia de que isso vai continuar depois da Copa. Em 2017 nós chegamos a um acordo com o Comitê Supremo e o nosso acordo era [fazer] inspeções. Pela primeira vez, um sindicado internacional foi até o Qatar e conduziu 25 inspeções.

Você foi lá pessoalmente?

Sim, eu fui um dos inspetores. Tivemos muitos inspetores da Europa, da Ásia, da Oceania... Nos estádios havia 60 mil trabalhadores no auge.

O que você viu nessas inspeções que te chocou mais?

Uma das questões que notamos foi a questão do calor. Isso é muito sério. E nós sentimos esse calor lá. Na pele. Na época eles tinham um tipo de vestimenta em que eles colocavam gelo dentro, e em 30 minutos você ficava todo molhado. Nós perguntamos aos trabalhadores e eles disseram: 'Nós não usamos isso porque fica muito pesado'. Então fomos até as empresas e pedimos pra isso mudar. Ouvimos também sobre trabalhadores caindo de grandes alturas por causa do cinto de proteção mal ajustado. Eles simplesmente não sabiam como usar isso direito.

Ao longo dos anos, houve melhorias significativas. Eles mudaram as acomodações, por exemplo, agora são quatro pessoas por quarto. Estamos lidando lá com empreiteiras internacionais, da Bélgica, da Itália, eles sabem quais são os padrões internacionais.

E o que fizeram com aquele sistema de resfriamento com gelo?

Inventaram uma vestimenta parecida com um traje esportivo, mais refrescante, que ajuda na transpiração. Agora tem um intervalo no trabalho a cada 50 minutos. Durante o verão não há trabalho entre 11h e 16h. Não é perfeito, mas a inspeção trouxe algum progresso. Eles tiveram que construir novos alojamentos e com boa internet wi-fi porque os trabalhadores reclamavam disso. Melhoraram a comida porque as pessoas recebiam todo dia a mesma comida. E nós dissemos que era preciso ter um nutricionista lá.

Qatar obra - Gabriel Carneiro/UOL - Gabriel Carneiro/UOL
Obras próximas do Estádio de Lusail, em Doha, no Qatar, em novembro de 2021
Imagem: Gabriel Carneiro/UOL

Olhamos os registros médicos. Você tinha um médico no canteiro e outro no alojamento. E eles não se comunicavam. Se você tinha uma dor nas costas por causa do trabalho, isso era registrado. Aí você vai pra casa e fica doente, o médico te dá um remédio, mas não se comunica com o médico do trabalho pra saber se você está doente por algo relacionado ao trabalho. Isso é medicina ocupacional. Se um trabalhador morria no alojamento, a empresa dizia: 'Ele morreu de causas naturais.' Ah vá! O cara tem 20 anos e morreu de infarto? Não, olhe a quantidade de horas que ele trabalhou, olhe para a alimentação dele, você tem que olhar a pessoa como um todo.

Nota da edição: O governo do Qatar afirma que 40 operários que atuaram nos estádios morreram desde que as obras começaram. Desses, apenas três teriam morrido em razão do trabalho. Esse número é alvo de controvérsia por causa da falta de transparência do governo local. Um levantamento do jornal britânico "Guardian" junto a embaixadas estrangeiras encontrou registros de ao menos 6.500 mortes de trabalhadores imigrantes no Qatar de 2011 a 2020.

Quantas mortes de trabalhadores vocês confirmam que aconteceram?

Desde que começamos a fazer inspeções, de 2017 pra cá, nos canteiros dos estádios, houve três mortes. No canteiro. Porque nós inspecionamos. Mas 36 ou 37 operários morreram nos alojamentos. O Qatar chama de 'mortes não relacionadas a trabalho'. E nós pedimos investigação. Porque não existe isso de 'não-relacionado'. Eles têm que investigar pra descobrir. Não pra buscar culpados, mas pra saber o que aconteceu. E o que acontece no alojamento não é totalmente não relacionado com o que acontece no canteiro. Temos várias questões: muitas horas de trabalho, um calor muito forte, tempo de descanso, saúde mental, nutrição, idade.

Muitas pessoas vão pro Qatar, pagam as taxas de recrutamento, chegam lá e não recebem salário. Vi centenas de casos de operários que ficaram dois anos sem receber. O que eles vão comer? Pra comer, eles dependem da ajuda de suas comunidades.

Você descreveria essa situação como escravidão moderna?

Sim, esse é um caso que vai contra a convenção internacional sobre trabalhos forçados. Isso é escravidão moderna. Eles deram alguns passos positivos, o que reconhecemos. Mas não é suficiente. Se você faz isso apenas no papel, não tem sentido.

Essa é a nossa demanda pro Qatar, mas também pra Fifa. Essa foi a queixa que fizemos na OCDE e a decisão delas foi muito clara, no sentido de que a Fifa tem responsabilidade sobre os operários que construíram os estádios da Copa. E eles têm que usar seus meios pra evitar que esses problemas aconteçam. Eu acredito que essa Copa pode trazer grandes mudanças para o país.

O governo anunciou o fim do sistema 'kafala' nas obras da Copa. Ainda existem práticas relacionado ao sistema 'kafala' em outros setores?

Sim. O sistema 'kafala' ainda existe. Nós visitamos os alojamentos dos operários dos estádios e perguntamos: 'Os trabalhadores estão com os passaportes com eles?' Porque é ilegal o empregador reter o passaporte. Eles diziam que o passaporte estava na bagagem deles. Mas isso não era seguro e pedimos para colocarem um armário com chave para que eles guardassem. E eles fizeram isso. Agora todos têm seus passaportes guardados nos armários. É positivo, mas falo só dos operários dos estádios.

Mas eles ainda não têm direito a fazer greve, por exemplo.

Não, não podem, isso é um problema. Mas há progresso. Eu reconheço que essas mudanças foram feitas há pouco tempo. Mas se a lei não for cumprida, ela não serve pra nada. A implementação da lei é o que me preocupa. Você pode abrir uma reclamação se quiser, vai lá, abra a sua reclamação. Mas aí você vai ficar esperando meses, às vezes anos até ela ser resolvida. E você é um imigrante, como vai ficar meses sem receber, vai viver do quê?

Olhamos as reclamações feitas ao ministério do trabalho, e 70% delas eram sobre salários não pagos. Existe um salário-mínimo, mas muitos operários simplesmente não são pagos. Uma lei não é suficiente. É preciso ter punição.

Estamos preocupados que tudo volte a ser como antes depois da Copa. Os trabalhadores não têm direito de se sindicalizar. Como podem brigar por seus direitos? Os jogadores também estão apoiando a construção de um centro lá para acolher os trabalhadores. Um lugar aonde eles possam ir pra conhecer os seus direitos, conhecer a lei. Se eu sou um trabalhador e tenho um lugar pra ir, esse centro vai me ajudar. Eles podem aprender o que a lei diz em suas próprias línguas. Se eles quiserem abrir uma queixa, eles podem pedir ajuda desse centro. A documentação pode estar toda em árabe, uma língua que muitos não dominam, e nesse centro podem ter ajuda. Esse pode ser um legado para o Qatar.