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Brasileirão - 2022

Por que os gols de falta estão diminuindo no Brasileirão?

Cobrança de falta de Luciano entrou no cantinho e abriu o placar para o São Paulo sobre o Flamengo no Brasileiro de 2021 - REUTERS/Amanda Perobelli
Cobrança de falta de Luciano entrou no cantinho e abriu o placar para o São Paulo sobre o Flamengo no Brasileiro de 2021 Imagem: REUTERS/Amanda Perobelli

Ana Flávia Oliveira

Do UOL, em São Paulo

01/07/2022 04h00

Os torcedores mais velhos se acostumaram a comemorar gols de falta. Era comum até comemorações antecipadas pela expectativa da bola na rede quando o árbitro apitava uma irregularidade perto da área. Esse sentimento era natural, afinal, o Brasil produziu exímios batedores, como Marcelinho Carioca, Juninho Pernambucano, Rogério Ceni, Ronaldinho Gaúcho, Neto, Marcos Assunção, Zico, Rivelino e outros que transformavam cobranças de faltas em chances claras de gols. Atualmente, porém, têm sido cada vez mais raros gols dessa forma.

Isso porque, o número de gols de faltas no Brasileirão vem caindo ano a ano. Levantamento feito pelo jornalista Rodolfo Rodrigues, colunista do UOL, mostrou que no campeonato de 2010 foram marcados 44 gols assim. No ano passado, foram 20. Até a 14ª rodada da atual edição da Série A, foram oito gols de falta, marcados por oito jogadores de sete equipes diferentes —o que comprova a ausência de especialistas.

Nas últimas cinco edições do brasileiro, somente Arthur Kaíque —atualmente no futebol japonês— alcançou a marca de cinco gols de falta, jogando por Bahia e Chapecoense.

Entre os atletas que ainda atuam no futebol brasileiro, Jean Pyerre, do Avaí, é o que mais marcou de falta —quatro gols nos últimos cinco anos, um deles neste ano, no empate em 2 a 2 contra o Palmeiras.

Mas qual será a razão desta seca? As respostas passam por diversos fatores, desde evolução tática do jogo, redução no número de faltas marcadas, mudança na estrutura física dos goleiros, prevenção de lesões e até o calendário apertado das competições. O UOL conversou com alguns especialistas para tentar responder à questão.

Em cobrança de falta, Rogério Ceni acerta barreira palmeirense - Fernando Donasci/UOL - Fernando Donasci/UOL
Em cobrança de falta, Rogério Ceni acerta barreira palmeirense
Imagem: Fernando Donasci/UOL

Mudanças táticas e queda no número de faltas

Segundo a CBF, o número de faltas marcadas no Campeonato Brasileiro caiu 16% na comparação entre 2010 (13.458) e 2021 (11.246). Neste ano, até a 13ª rodada foram marcadas 3.883. Não há dados, de quantas faltas foram perto da área.

Essa queda pode ser explicada pela mudança tática dos jogos, com adiantamento da marcação e diminuição de espaço entre o primeiro homem e a cobertura, reduzindo, assim, as faltas desnecessárias próximas às áreas.

"Está sendo uma tônica forte, principalmente na Série A. Você adianta mais a marcação, trabalha com bloco mais alto. Se tiver que fazer a falta, faça longe da área. É uma determinação nossa. Antigamente, havia muito espaço entre as linhas, então essas faltas eram mais na entrada da área. Hoje dificilmente, você vê uma falta na entrada da área. Ou ela é na zona lateral ou intermediária", explica Eduardo Baptista, treinador do Juventude.

O auxiliar Eudes Pedro, fiel escudeiro do técnico Cuca, concorda. "O futebol evoluiu bastante na parte técnica, tática. As equipes jogam muito mais compactas entre linhas do que antigamente, e a marcação começa muito alta, até lá no ataque, fazendo com que diminua muito o número de faltas no jogo".

Com as mudanças, os atletas têm de se deslocar mais em campo. Estudo de Turíbio Leite de Barros Neto, ex-fisiologista do São Paulo, mostrou que na década de 70 um atleta percorria entre 4 e 7 km por jogo. Atualmente, o deslocamento individual varia entre 9 e 11 km por partida.

O médico do esporte e fisiologista Paulo Zogaib, que por 22 anos atuou no Palmeiras e teve uma passagem recente pela Portuguesa, complementa que o futebol atual é mais intenso, exigindo um comprometimento físico maior dos jogadores. "A intensidade define o jogo. As jogadas decisivas ocorrem nesses momentos. Quanto maior o número de eventos de intensidade que o time faz, maior a chance de ele fazer um gol. O problema é o desgaste físico. Enquanto o trotinho cansa, a intensidade desgasta".

Risco de lesões e calendário apertado

Zogaib ainda alerta para o calendário apertado do futebol brasileiro. "O grande problema desses calendários é que você expõe o jogador a momentos de intensidade muito frequentes e com uma pausa e tempo de recuperação insuficientes".

Com maior exigência física e calendário apertado não sobra tempo e nem vigor físico para treinamentos de repetição, como é o caso de cobranças de faltas.

Isso realmente tem um risco de uma lesão porque é um esforço muito repetitivo de um agrupamento muscular só. Quando você faz esses exercícios específicos você tem sobrecarga local, naquela musculatura da coxa, principalmente a adutora. Evidentemente, o risco de lesão aumenta e você tem que fazer isso com muito critério, muito cuidado, incremento gradativo. Não dá para de um dia para o outro começar a bater 100 faltas".
Paulo Zogaib, médico do esporte e fisiologista

Barreiras menos estáticas e goleiros mais altos

Segundo o site Ciência da Bola, que analisou 60 gols de faltas antigos e atuais, a barreira passou a saltar mais com o passar dos anos. Em 30 cobranças antigas analisadas, a defesa se manteve imóvel em 20 delas. Nas mais atuais, os jogadores saltaram em 27 das 30 cobranças.

Além disso, os jogadores e, sobretudo, os goleiros estão mais altos. "A média de estatura dos goleiros aumentou demais. Hoje eles têm quase 2 metros", analisa Eduardo Baptista, técnico do Juventude.

A média atual dos goleiros dos vinte clubes da Série A é de 1,89 m, com destaque para Hugo, do Flamengo, que tem 1,99 m e Cássio, do Corinthians, com 1,96 m. Reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 2003 apontou que, naquele ano, a média de estatura dos arqueiros era de 1,88 m, quatro centímetros a mais do que 10 anos antes.

Para o treinador do Juventude, a evolução do treinamento de goleiros é outro fator que influenciou esta mudança. "Eles [goleiros] passaram a ter treinamentos específicos, de força, de salto...Há 12 anos, existia algum tipo de trabalho, mas não tão específico como está sendo hoje. Então essa diminuição [de gols de falta] se dá muito pela evolução dos goleiros, pela altura, pela força, pela técnica".

Faltam "especialistas"

Zico, Ceni, Ronaldinho Gaúcho e Juninho Pernambucano  - Fotos: Vidal Cavalcante/Folhapress, VIPCOMM, Alexandre Vidal/Fla Imagem, Flickr/Vasco - Fotos: Vidal Cavalcante/Folhapress, VIPCOMM, Alexandre Vidal/Fla Imagem, Flickr/Vasco
Zico, Ceni, Ronaldinho Gaúcho e Juninho Pernambucano
Imagem: Fotos: Vidal Cavalcante/Folhapress, VIPCOMM, Alexandre Vidal/Fla Imagem, Flickr/Vasco

Embora não haja um único motivo para explicar a redução, é consenso que faltam especialistas.

A gente não vê mais um Zico sendo formado, um Marcelinho, um Ronaldinho Gaúcho, um Neto. A gente sente falta desses atletas também."
Eduardo Baptista, técnico do Juventude

"Eles [os atletas] já vinham com esse DNA. Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, após cada treino, batia 20 faltas quase todos os dias. Dessas, eram 17 gols, duas bolas na trave e uma para fora. A qualidade dele era excepcional", relembra Eudes Pedro, que trabalhou com o Bruxo no Atlético-MG. "Agora a gente pega os quatro, cinco melhores batedores do time e trabalha exaustivamente. Mas esses cinco batedores não têm essa qualidade. A cada 20 faltas, você vê cinco, seis gols."

Para o ex-volante Marcos Assunção, que passou por Santos, Flamengo e Palmeiras, os jogadores atuais não se interessam em se tornar "especialistas". Aposentado desde 2016 e atualmente trabalhando como comentarista, ele diz que marcou mais de 100 gols de falta na carreira.

Eu não gostava de treinar faltas, eu amava. Não via a hora de terminar o treino para ficar chutando no gol, treinando faltas. Quando o jogo era domingo, eu treinava 100 faltas na sexta e chegava a 50 no sábado. Eram 150 faltas para chegar no jogo, ter uma única e ter que fazer o gol. Essas faltas que cobrava nesses dois dias me davam confiança de que eu iria fazer o gol nessa única oportunidade. Eu não tinha nenhum tipo de preocupação quando eu ia bater a falta porque eu sabia que tinha treinado." Marcos Assunção

26.10.2010 - Marcos Assunção em treino de cobrança de falta com barreiras no Palmeiras - Santos, Fernando/TBA/FOLHA DE S.PAULO - Santos, Fernando/TBA/FOLHA DE S.PAULO
26.10.2010 - Marcos Assunção em treino de cobrança de falta com barreiras no Palmeiras
Imagem: Santos, Fernando/TBA/FOLHA DE S.PAULO

Questionado sobre o risco de lesão pelos treinamentos intensivos, Assunção reitera que o jogador deve conhecer os próprios limites. "Muitas vezes, eu estava muito cansado e ia para casa, mas no outro dia eu estava lá treinando porque eu sabia que no final de semana ia ser muito importante eu estar bem e confiante para fazer o gol".

Além do autoconhecimento, Assunção diz que o atleta precisa ter vontade de se tornar um especialista. "A principal coisa é o jogador querer ser um grande batedor de falta. Não adianta estar ali por estar".

Ídolo da torcida corintiana, Marcelinho Carioca avalia que falta personalidade aos jogadores atuais para arriscar nas cobranças. "O atleta não arrisca de média distância, de longa distância, das faltas laterais. Tem medo de chutar, de contrariar o treinador".

Em busca da batida perfeita

31.12.96 - Marcelinho Carioca, do Corinthians, marca de falta contra o Palmeiras - Antonio Gaudério/Folha Imagem/Antonio Gaudério/Folhapress - Antonio Gaudério/Folha Imagem/Antonio Gaudério/Folhapress
31.12.96 - Marcelinho Carioca, do Corinthians, marca de falta contra o Palmeiras
Imagem: Antonio Gaudério/Folha Imagem/Antonio Gaudério/Folhapress

Assim como Assunção, Marcelinho Carioca diz que o treinamento é essencial. "A repetição te leva à perfeição", brinca o ex-meia, que contabiliza 82 gols de falta na carreira.

Marcelinho afirma ter observado grandes batedores, como Zico, Eder, Nelinho, Neto, Zenon, Ailton Lira e Didi Folha Seca, para se inspirar e encontrar o próprio jeito de bater na bola. Segundo ele, não adianta apenas chutar ao gol, pois uma série de outros fatores influenciam a "batida perfeita".

Eu fui pegando meu jeito. Chegava duas horas antes [do treino] e ficava treinando faltas, [para sentir] a envergadura do corpo, o peso da bola. A chuteira que eu treinava era a mesma que eu levava para o jogo. Eu arriscava, tinha intimidade com a bola. Às vezes, não tinha goleiro, eu colocava coletes, argolas nos ângulos. Eu comecei a treinar de todos os jeitos e lados do campo, perto da área, de média e de longa distância"
Marcelinho Carioca

"[Estudava] o birro da bola, que é a pressão, e eu começava a colocar de vários jeitos. Eu criava graus de dificuldades na distância da barreira, olhava o posicionamento do goleiro, o pé de apoio dele. Se ele se mexe, mete no canto dele, se não, mete por cima da barreira", exemplifica o ex-Corinthians.

Marcos Assunção também tinha suas técnicas para aprimorar a batida. Ele conta que quando estava no Palmeiras pediu para aumentar o tamanho da barreira usada no treinamento para não ser pego desprevenido quando os jogadores da barreira real saltassem durante o jogo.

"Aumentaram a barreira para 2,15 m, e eu colocava a bola ainda um pouco para frente [antecipando a movimentação da defesa]. É normal num jogo que os jogadores, que já são altos, pulem. Então, eu estava acostumado com a altura da barreira e sabia que os jogadores iriam andar para dificultar meu chute ao gol. Eu treinava tudo isso", recorda Assunção.

"Eu ouço pessoas falando que cobrar faltas é fácil, mas não é. Você tem o goleiro, a barreira, você tem [de saber] a força que tem que colocar na bola, pensar em colocar ela onde o goleiro não vai chegar. Você tem que saber a altura que vai porque a barreira pula. Muitas coisas dificultam para o cara bater a falta. Se depois do treinamento, você bate cinco cobranças, vai ser muito difícil fazer gol de falta. É preciso repetir. Essas repetições faziam com que eles [grandes batedores] tivessem essa confiança de ter uma única falta no jogo e fazer o gol", finaliza Assunção.