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Falcão revisita 82 e diz por que seleção segue unida até contra coronavírus

Falcão (à direita) em ação na partida contra a Itália, de Paolo Rossi; Sportv exibe Brasil 2 x 3 Itália neste sábado - Jorge Araújo/Folhapress
Falcão (à direita) em ação na partida contra a Itália, de Paolo Rossi; Sportv exibe Brasil 2 x 3 Itália neste sábado Imagem: Jorge Araújo/Folhapress

Bruno Freitas

Colaboração para o UOL, em São Paulo

10/04/2020 04h00

Em tempos de futebol paralisado pela crise do coronavírus e reprises de jogos históricos na TV brasileira, a cultuada seleção de 1982 e sua importância voltam a ganhar reflexões, graças ao Sportv. A emissora tem exibido desde a última terça-feira a campanha do time de Telê Santana na Espanha, em resgate de memória que terá seu ápice neste sábado, com a transmissão do embate com a Itália, que ficou conhecido para a posteridade como "Tragédia do Sarriá", em menção ao nome do extinto estádio em Barcelona onde o duelo aconteceu.

Com o super time de Zico e Sócrates na telinha desde terça, as redes sociais ganharam discussões renovadas sobre a seleção de 1982. Então o UOL Esporte procurou Paulo Roberto Falcão, um dos nomes mais destacados daquela equipe. Autor de um dos gols na derrota para a Itália por 3 a 2, que resultou na eliminação precoce na Copa, o atual treinador brilhou naquele Mundial, terminando eleito como segundo melhor jogador, atrás apenas do algoz italiano Paolo Rossi. O ídolo contou como e por que aquela geração segue unida - até na luta de hoje contra o coronavírus.

O Sportv exibe Brasil x Itália neste sábado às 17h30, na Faixa Especial, com Luiz Carlos Júnior e comentários de Lédio Carmona e Pedrinho. Aquela partida de 5 de julho de 1982 era válida pelo triangular de 2ª fase. O Brasil havia batido a então campeã mundial Argentina por 3 a 1 e depois os italianos também derrotaram os argentinos por 2 a 1. Por isso, com vantagem no saldo de gols, a seleção de Telê jogava por um empate na rodada final para avançar à semifinal diante da Polônia.

Sarriá é um dos capítulos marcantes da seleção em Copas, em história construída por façanhas e decepções. Mas por que a partida contra a Itália em 1982 continua como objeto de reflexão mesmo 38 anos depois?

Falcão sempre teve uma visão mais analítica do jogo, mesmo nos tempos de jogador, quando era tratado como um técnico dentro de campo. Em 2012, o ídolo de Internacional e Roma escreveu um livro sobre aquela seleção ("Brasil 82: O Time que Perdeu a Copa e Conquistou o Mundo"). Agora, a convite do UOL, o treinador comenta detalhes sobre o célebre jogo e fala da amizade intacta com os colegas de time.

Revendo os jogos no Sportv: "essa seleção emocionou"

A sensação de quem participou da seleção de 1982 é muito mais de orgulho do que de dor, pela ausência do título. Falcão externa isso ao manifestar que tem acompanhado a semana especial no Sportv. "Vou assistir a todos os jogos", diz. "Vendo o jogo a gente volta no tempo."

Para o antigo meio-campo, o time de Telê transcendeu o crivo da história mesmo sem o título, em razão de ter conquistado o carinho de fãs.

"Tenho convicção, já disse isso em algumas oportunidades, de que você tem que jogar para emocionar. E aquela seleção emociona. Evidentemente, muitos ganharam sem emocionar. Você, como treinador, tem que montar uma equipe que ganhe. Mas para que essa equipe permaneça, você tem que jogar bem, senão vira só um dado estatístico. A gente emocionou as pessoas. Com um agravante, nem sequer chegamos nas semifinais. Jogamos cinco partidas, não perdemos na final de forma injusta. Isso mostra que foi uma equipe apaixonante."

Conversas com Telê, Zico e Sócrates antes do jogo

O livro "Sarriá 82: O Que Faltou ao Futebol-Arte?", de Gustavo Roman e Renato Zanata, relata que, antes do jogo contra a Itália, Falcão teria recomendado a Telê que o time adotasse uma postura um pouco mais cautelosa, principalmente com relação à exposição dos dois laterais no ataque. Perguntado sobre a questão, o ex-camisa 15 dá sua versão:

"Não lembro disso. O que lembro é que fomos assistir ao jogo da Itália contra a Argentina. Na volta fizemos um lanche, estava na mesa o Telê, eu, o Zico e o Sócrates. Eu falei que o jeito que eles jogaram contra a Argentina iria se repetir. Falei: 'O (Claudio) Gentile ficou no Maradona o tempo todo. Galo (Zico), ele vai te marcar, mas eu vou fazer você jogar'. Você pode ver que foi isso que aconteceu no gol do Sócrates, o Gentile chega atrasado antes de o Zico se desvincilhar e lançar."

"Na palestra antes do jogo o Telê me perguntou se eu queria acrescentar alguma coisa, já que eu conhecia os italianos por jogar lá na época. Não iria mudar nada, era o destino. Mas eu sugeri que o Zico caísse mais pela lateral direita, para forçar o Gentile a se deslocar para o setor do (Antonio) Cabrini. Mas não mudaria nada, estava escrito. A gente conhecia a Itália, eles crescem em jogos importantes. Tinham vindo de três empates na primeira fase, mas respeitávamos muito eles."

Falcão ainda rebate um mito popular que circulou entre torcedores por um bom tempo, de que Telê teria descartado a ideia de que era preciso se defender - e de defender a vantagem do empate na partida.

"O Telê disse que era para a gente jogar como sempre jogávamos, ofensivamente, que estava dando certo. Mas, de forma sutil, disse também que era bom lembrar que o empate servia pra gente."

Brasil praticamente só correu atrás no jogo

A Itália abriu o placar aos 5min do primeiro tempo (Paolo Rossi), e o Brasil empatou aos 12min (Sócrates). Os italianos marcaram de novo aos 25min, e a seleção igualou só aos 22min da etapa final, com Falcão. Rossi fez seu terceiro pouco depois, aos 28min. Ou seja, na maior parte do jogo os brasileiros tiveram que correr atrás, em panorama até então inédito dentro da Copa.

"No intervalo a gente falava: 'vamos virar'. Era a primeira vez que a gente estava atrás naquela Copa. A marcação dos italianos era muito forte, com o (Gabiele) Oriali na lateral, o Gentile, que era lateral direito, em cima do Zico. Mas o nosso time era de muita criatividade, não tinha retranca que a gente não furasse. A gente estava otimista, com confiança, nosso time jogava bem."

"Nunca tivemos muito tempo na frente, ou seja, com o empate, que nos classificava. Mas não descuidamos quando o resultado era nosso. Tanto que a gente faz 2 a 2 (no segundo tempo) e estávamos com dez jogadores dentro da área no lance do terceiro gol do Paolo Rossi."

Obra com retrato do ex-jogador Paulo Roberto Falcão, uma das estrelas da promissora seleção brasileira na Copa de 1982, na Espanha (o time, porém, acabou eliminado pela Itália). Localizado em São Paulo, o mural feito por Eduardo Kobra foge um pouco de seus tradicionais padrões de cores e formas geométricas - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Mural do artista Eduardo Kobra reproduz nas ruas de São Paulo a comemoração histórica de Falcão
Imagem: Arquivo Pessoal

Gol virou arte. Mas "classificação" durou só 6 minutos

Bem na metade do segundo tempo, Júnior pegou a bola na esquerda e conseguiu "rasgar" em direção ao centro, acionando Falcão na direita. O jogador da Roma teve calma para esperar Toninho Cerezo passar por atrás e enganar três marcadores italianos, ao cortar para o meio. A bomba de pé esquerdo finalmente venceu o veterano goleiro Dino Zoff, que estava em tarde inspirada.

A corrida de comemoração de Falcão, com os braços abertos e semblante de euforia, ficou na cabeça dos fãs de futebol. Parecia ali, aos 22min do segundo tempo, que o Brasil confirmaria o favoritismo rumo à semifinal.

"Foi uma vibração muito forte. Uma imagem que marcou, tanto que virou um mural de rua enorme em São Paulo, feito pelo artista Eduardo Kobra. Um momento de muita alegria, caracterizava a importância daquele gol para a seleção. Tem uma outra foto que mostra eu correndo e o (Giancarlo) Antognoni com as mãos na cabeça, como que dizendo: 'agora perdemos'. Era uma sensação de classificação, as veias saltavam."

O abraço silencioso com o amigo Conti no fim da partida

Foram apenas seis minutos de "sensação de classificação", com a euforia levada a milhões de brasileiros na Rede Globo através da transmissão entusiasmada de Luciano Do Valle. Mas após um escanteio cedido num lance de indecisão entre Waldir Peres e Toninho Cerezo, Rossi marcou o gol decisivo, depois também de um breve bate-rebate na área. Era o golpe definitivo no sonho do tetra.

A reportagem perguntou a Falcão qual foi o sentimento de momento quando o árbitro israelense Abraham Klein encerrou a partida. Resposta: "Não tem muito pensamento claro, não tem uma definição. São 38 anos já. O que me veio foi uma coisa sombria."

Falcão ainda relatou como foi a interação com um adversário vencedor, seu colega de time na Roma.

"Um fato marcante foi depois do jogo com o Bruno Conti. Ele é muito meu amigo, um cara muito divertido, muito gente fina. Jogou muito naquela Copa. A gente foi trocar a camisa, já tinha combinado isso, mas não falamos nada. Demos um abraço, mas nenhuma palavra. Silêncio."

"Depois ele foi ao vestiário do Brasil e viu a nossa tristeza, ficou impressionado. Até falou isso num depoimento num vídeo de aniversário meu. Ele disse que estava contente pela vitória, mas triste por mim, que era como um irmão para ele."

Funeral no vestiário: "você não entende nada"

"Depois do jogo o vestiário parecia um pequeno funeral, todo mundo chorando. Você procura entender, mas naquele momento não entende nada, só que você está fora do Mundial. Na saída, um silêncio absurdo no ônibus. Aí, chegando na concentração tinha uma faixa, em espanhol: 'Valeu, Brasil. Nem sempre ganha o melhor'."

Grupo no WhatsApp e reunião contra o coronavírus

Da experiência na Espanha, ficou para os integrantes daquela seleção o elo de amizade, que faz Falcão até aceitar uma pequena exceção em sua relação com a vida tecnológica atual.

"A gente se reuniu duas vezes depois. A primeira foi em 1990 na Itália, um dia antes da Copa, foi na despedida do Júnior no Pescara. Jogamos contra os italianos de novo, foi muito legal."

"Não tenho grupos (de WhatsApp), o único que tenho é o do time de 82. A gente às vezes se fala. Recentemente eu pedi para eles ajuda na gravação de uma campanha do CUFA (Central Única das Favelas), todo mundo colaborou e estava disponível. Mandavam os vídeos, perguntavam se estava bom, se era isso mesmo."

"Hoje só não temos o Waldir (Peres), o Dirceu e o Magrão (Sócrates)", conclui, em menção aos ex-colegas já falecidos.

Abaixo, o vídeo da campanha da geração de 82 para a Central Única das Favelas, em uma ação de mobilização no combate ao coronavírus. Engajados por Falcão, os ex-jogadores da seleção participaram da ação e conseguiram ajudar a disparar o número de doações: mais de R$ 2,6 milhões para quase 11 mil famílias atendidas.

"A seleção de 1982 ficou conhecida pela criatividade, pela união e pelo trabalho coletivo", diz Falcão na abertura do vídeo, em um bom resumo do que aquele time inspira nos torcedores brasileiros, até hoje.