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REPORTAGEM

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Rogerinho: de Parelheiros à Califórnia, uma lição de vida no adeus ao tênis

João Pires/Fotojump
Imagem: João Pires/Fotojump

Colunista do UOL

16/02/2022 05h08

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Na infância, eram seis horas de ônibus para ir e voltar do treino. Hoje, com 38 anos, Rogério Dutra Silva mora na Califórnia, soma US$ 1,8 milhão em prêmios e tem no currículo o 63º posto no ranking mundial como a melhor posição da carreira. Isso faz do paulista o 14º brasileiro mais bem colocado desde que a lista da ATP foi criada.

A caminhada como profissional, com 19 anos de história, incluiu temporadas comendo lasanha congelada, viagens para o estrangeiro sem saber se haveria dinheiro para a volta e todo tipo de sacrifício. Uma jornada que chegará ao fim nesta semana, no Rio Open. Rogerinho fará sua última apresentação como profissional na chave de duplas, ao lado de Orlando Luz, e a estreia - e talvez última partida - será nesta quarta-feira, contra o também brasileiro Bruno Soares e o parceiro Jamie Murray.

No começo da semana, Rogerinho e eu batemos um papo na sala de imprensa do Rio Open. Uma conversa com um par de momentos bem emocionantes, relatos incríveis e uma lição de vida que poucos no tênis podem dar. O veterano faz, acima de tudo, uma declaração de amor ao esporte, sua faculdade da vida: "Você aprende a fazer as coisas sozinho, aprende a encontrar a solução para os seus problemas e leva para sua vida inteira."

Leiam, por favor. Rogerinho e sua trajetória têm muito a ensinar.

Eu entrevistei seu irmão [Daniel Dutra da Silva] alguns anos atrás, antes da pandemia. Ele tinha 40 finais de Future na carreira, e é uma coisa que, de repente, muita gente não dá valor, mas tem sua relevância. E ele fala com muito orgulho de ter se tornado um tenista profissional. A frase dele foi "orgulho de onde a gente saiu. Eu, meu irmão, a minha família". Hoje você está com 38 anos, foi número 63 do mundo, teve uma carreira longa, a maior parte dela sem patrocinador... Sua sensação é essa, também?

Meu pai fala, fala: "Vocês são os Roger Federers, da minha vida e do Brasil." Porque às vezes as pessoas não vêem desse jeito. É exatamente o que você falou: da onde a gente saiu, né? Uma situação muito humilde. Se você for olhar, não vou falar "zero chance de jogar tênis" porque a gente conseguiu, mas havia uma porcentagem [de chance] muito baixa de a gente jogar um esporte que é difícil, que tem que viajar, a cada semana estar num lugar e toda aquela história. Então eu me orgulho muito da onde a gente saiu, o que a gente fez e o que a gente conseguiu? Ele ainda tá conseguindo contribuir pro tênis, né? [Daniel segue no circuito e é hoje o número 338 do ranking mundial]

Falaram muito alguns anos atrás sobre as lasanhas congeladas que você comia... Foi uma reportagem que foi do João Victor Araripe, e esse é só um pedaço da sua história, né? Acho que houve vários outros momentos tão difíceis quanto, mas conta um pouquinho do que significa esse "sair de onde você saiu e chegar aonde você chegou"... O que você passou, o que você superou...

Rogerinho vertical - João Pires/Fotojump - João Pires/Fotojump
Imagem: João Pires/Fotojump
São muitas histórias. A história que o pessoal até pergunta e fica um pouco surpreso é coisa simples, assim, quando eu fui treinar em São Paulo, né? A gente é bem do extremo sul de Parelheiros, ali de Marsilac, entre Parelheiros e Embu Guaçu [extremo sul da capital paulista]. Eu fui treinar na Play Tennis, numa academia em São Paulo, e a gente demorava pra ir treinar. Eram 3h de ônibus para ir e 3h pra voltar. E era assim. Na época, eu treinava com o Chapecó (Carlos Chabalgoity) e muitas vezes acontecia que eu ia para a academia, chegava lá e estava tudo molhado. Ou que eu estava em casa ainda, e o Chapecó me ligava e falava: "Cara, cadê você?" E eu: "Cara, tá chovendo." Ele falava: "Não, as quadras estão perfeitas aqui." Então todo dia eu tinha que ir, todo dia eu acordava 4h30min da manhã, pegava 3h de ônibus pra ir, entendeu? Meu irmão muitas vezes também treinava no Paineiras, e a gente voltava nas lotações da vida. Meu pai ajudou no que podia, né? Tinha dia assim: ou pagava o ônibus ou a lotação ou não ia treinar. E eu treinava 3h de manhã e 3h à tarde, então era chegar pro cobrador do ônibus e falar: "Cara, tem como passar por baixo?" Mas isso foi não só com 14 e com 15 anos. Foi até quase os 19. Imagina um marmanjo, ninguém sabia o que era, com as raquetes nas costas, assim, e muitas vezes os caras falavam "não". Tinha que pagar, mas eu não comia nada. E aí eu ia para a escola e só chegava em casa 11h da noite pra poder comer. E 4h30min da manhã, no outro dia, a mesma coisa. E muitas vezes estava no ponto de ônibus e não conseguia entrar. Saía do treino às 5-6h da tarde, eram quatro ônibus passando e não conseguia entrar de tanta gente que tinha. Lotação... "Quanto que cabe aí? Tá cheio?" O cara fala: "Não, cabe mais dois." A gente sempre brincou com isso (risos). O cara da lotação nunca falava que tava lotado. Não sei nem se tem lotação em São Paulo, mas nessa época a lotação não era legalizada, então o cara sempre dizia "Não, cabe mais dois, cabe mais dois". A gente se metia lá porque não queria esperar. Às vezes, você estava esperando, morrendo de fome, e ainda, tipo, 3h pra voltar pra casa, entendeu? Eu falava: "Cara, vamos se meter. Pagamos aqui, comemos quando chegar em casa", entendeu?

E isso que você conta é antes de se tornar profissional, né? Porque depois as dificuldades só mudam de tipo, né?

Minha primeira viagem que é muito interessante. A minha primeira viagem internacional foi com 17 anos, foi quando eu fui começando a profissionalizar. Eu sou muito amigo do primeiro treinador do Pablo Cuevas, o Felipe, e o Felipe tinha vindo pra São Paulo e falou: "Vai ter uns Futures em Montevidéu, por que você não vai jogar?" Eu falei: "Ah, não tenho condições." Eu já conhecia o Felipe antes, e ele falou: "Fica lá em casa". Só que o detalhe que ele não falou é que a casa dele era a 1h30min de Montevidéu (risos). Eu nem perguntei, eu falei: "Cara, vou jogar, vou conseguir viajar." Sabe? Dividi a passagem em 60x , eu vou conseguir, vamo embora. Cara, chegou lá, a gente ia todo dia? Pô, lembro que ele tinha uma Fiorino só que tinha dois lugares, então era 1h30h. Ia ele em um banco, o Pablo Cuevas no outro e eu atrás, na caçamba, sabe? Na caçamba do carro dele, mas feliz da vida e um friiiiiio... E foi onde eu fiz o meu primeiro ponto que, assim, que eu considero que foi o meu primeiro ponto. Essa daí foi minha primeira aventura. Depois tem aquela que eu contei já, que eu fui pra Europa com 500 euros pra saber o que que ia acontecer. Então era assim. Muitas vezes, por exemplo, eu ia para o clube com as malas, jogava meu jogo... Ganhava o jogo, voltava pro albergue com as malas, dormia abraçado com as malas, voltava para o clube e ficava nessa daí, entendeu? Encordoava raquete... eu viajei por quase oito anos com a maquininha. No meu tempo livre, eu encordoava, fazia 4-5 raquetes a 15 euros, cobrava a metade do preço para os caras, e era um jeito de eu me manter. E consegui ficar três meses assim na Europa. Essa foi a primeira experiência da Europa que eu tive. Então tem muita história assim como a da lasanha.

Incrível como isso deu certo...

Teve uma vez também que deu errado essa dos 500 euros. Passou um tempo, não foi no mesmo ano. Um tempo depois, estava naquele negócio de não conseguir jogar, não estava conseguindo juntar dinheiro, estava sem torneio, nada no Brasil. Esses torneios de dinheiro também não tinha nada, mas eu consegui juntar um pouquinho e falei: "Ah, deu da outra vez, vamos embora, foda-se." Cheguei na Itália, tomei primeira rodada no quali. Na segunda semana, quali de novo. Cara, acabou o dinheiro. Peguei dinheiro emprestado pra voltar pra casa, só que eu peguei assim, eu fiquei com vergonha de pegar emprestado então eu pedi só o dinheiro do ônibus pra chegar no aeroporto. Só que eu tinha que pagar a mudança de passagem, e eu lembro que meu voo era em Milão, e eu fazia escala na Suíça, se eu não me engano. E chegou em Milão e não me cobraram a troca de passagem. Falei: "Nossa, que lindo, maravilha!" Aí chegou na Suíça, estava esperando o outro voo, e chamam meu nome. Eu suava frio. Cara, eu não tinha, assim, não tinha uma nota de nada na minha carteira. Nada, nada! Estava zerado, e ela: "Moço, olha, esqueceram de cobrar a mudança, não sei o quê, é 300 euros e não sei o quê." Falei: "O quê? Não tenho dinheiro." Ela: "Mas você pode pagar com o cartão." Falei: "Não, não tenho cartão." Ela falou assim: "Mas não, cartão de crédito você pode pagar." Eu falei: "Moça, eu não tenho cartão nenhum. Aqui, olha, essa aqui é a minha carteira." Mostrei pra ela. Ela entrava na sala, saía, entrava, e aí ela saiu e falou: "Como que você viaja sem cartão?" A mulher meio que se comoveu. Aí ela entrou de novo e falou: "Eu não estou acreditando que você tá fazendo isso." Falei: "Moça, eu estava jogando um torneio, acabou meu dinheiro, e é isso daí. Agora me ajuda porque eu preciso voltar pra casa. Se você tiver algum jeito de eu tentar pagar depois..." Ela falou: "Não, não é assim que funciona." E aí ela falou: "Meu, não faz mais isso", não sei o quê. Me deu uma puxada de orelha. Eu era molecão e eu agradeci e fui embora feliz da vida pra casa. E minha mãe teve que me buscar no aeroporto porque eu não tinha dinheiro pra chegar em casa. Essa história foi quando deu errado, porque também teve algumas várias vezes que deu errado, sabe?

Várias?

Teve um cara que foi muito importante já nessa época do profissional, que foi o Cristiano Oliveira, que é um treinador de Minas que mora na Espanha. Numa dessas, ele me salvou porque eu estava num torneio e acabou meu dinheiro. Eu estava na Espanha e acabou meu dinheiro, eu precisava ir embora. Ele morava em Portugal nessa época e falou: "Não, cara, vamos pra casa, você fica lá em casa, e lá tem vários torneios de grana pra você jogar. Ali foi um grande divisor de águas porque eu fiquei em Portugal, sei lá, 3-4 meses. Eu juntava dinheiro em Portugal, pegava o ônibus pra Espanha e jogava os Futures. Então eu tinha uma base na Europa pra fazer isso, e foi muito bom, assim, mentalmente, profissionalmente, tecnicamente porque?

Em que ano foi isso, você lembra?

Eu não lembro em que ano foi isso, cara. Eu acho que eu devia ter mais ou menos uns 23-24 anos. Daí, depois que eu voltei da Europa eu comecei a dar aquela alavancada mais para os Challengers, foi quando eu consegui dar aquela entrada mais nos Challengers.

Você enfrentou o Djokovic em Roland Garros, jogou contra o Kyrgios na Austrália, contra Nadal no US Open e em Barcelona, e o Djokovic também no US Open. Quais são as melhores lembranças que você tem desses 20 anos de carreira?

É difícil dizer as melhores assim... Eu acho que teve alguns objetivos que eu alcancei que, pra mim, eram coisas que eu via muito fora da real assim. O Larri, nessa parte, foi um cara que sempre me puxava e falava: "Cara, você pode jogar, você tem nível para isso." Mesmo quando eu estava 400 do mundo, ou 350 quando eu cheguei na academia dele. Um [dos objetivos] que foi a Copa Davis. A Copa Davis foi uma coisa, assim, muito bacana. As Olimpíadas também foram uma coisa assim. Entrar no Maracanã, com a torcida, sabe? Ninguém sabe disso, mas eu deixei de ganhar [o prize money de] sete chaves de ATP Tour para poder jogar no Rio, nas Olimpíadas, e não ganhar nada, entendeu? Porque todo mundo fala "que bacana, né? Entendeu? Então foi uma coisa assim, muito bacana, que no momento eu tive que tomar essa decisão. Meu técnico até dizia "Cara, a gente está 70 e pouco [no ranking], a gente tem seis torneios pra jogar, 6-7 torneios. Tudo bem que era gira americana, mas não ia ter ninguém jogando, entendeu? Foi aquela época que aquele ATP de Hamburgo não tinha ninguém jogando. "Ninguém" é modo de falar, mas tava muito acessível. Então eu ficava balançado, mas acho que eu fiz a melhor escolha, que foi uma coisa que eu vou guardar pra minha vida inteira.

Você viajou o mundo, conheceu gente pra caramba, teve um retorno financeiro que não sei se pagou todas as contas da vida mas...

Não tem o que reclamar, né?

Então o que o tênis te deu de mais valioso? É uma pergunta meio filosófica, mas...

É uma pergunta bacana. O tênis me fez como pessoa, entendeu? Acho que foi a faculdade que eu fiz, digamos assim. Eu não fiz uma faculdade e tenho vontade de fazer ainda, mas a faculdade da vida no tênis, e o que essas situações me fizeram como hoje um pai de família... Eu agradeço muito ao tênis. É uma coisa? É muito legal, assim, sabe? Quando você aprende a fazer as coisas sozinho, você aprende a ter que encontrar a solução para os seus problemas, então acho que isso aí é o que fica de verdade, e você leva para sua vida inteira. Por isso que eu falo pra todo mundo: "Cara, joga tênis." Não é o fato de ser profissional ou não. O tênis te ensina muita coisa. Te ensina ser educado. Não é igual a outros esportes. Aqui, se o cara roubar, ninguém fala mais com ele. A gente fala "aquele cara rouba". Então o tênis, também sendo filosófico como pai agora, o tênis é um esporte que ensina muita coisa, então é um esporte que eu amo demais.

Eu soube agora que você está morando na Califórnia? Como aconteceu isso?

Coisas da pandemia (risos). Eu estava voltando pra jogar, tenho um amigo muito próximo, muito parceiro meu, que é o Fábio Machado, e ele sempre me falava: "Cara, vem pra cá se precisar treinar." Ele está na Califórnia, em Los Angeles, num clube muito bacana. E quando deu a pandemia eu estava lá em Los Angeles para ir para Indian Wells. Então ia fechar o aeroporto, não sei o quê, eu voltei pra casa. Depois que passou tudo, ele falou: "Cara, vem pra cá. Te consigo alguns patrocínios", isso e aquilo. Eu fui pra lá de novo. Eu ia jogar aqueles UTR que davam uma premiação boa, falei "Pô, vou jogar os UTRs, consigo pegar um ritmo pra poder voltar a jogar". Estava em Los Angeles, e deu aquela segunda onda que começou a fechar tudo de novo. E aí eu tava lá, e comecei a trabalhar no clube. Comecei a dar uns treinos no clube, o pessoal começou gostar, começou a vir gente, e aí o pessoal meio que falou: "Cara, você não vai embora daqui, não." (Risos) E me fizeram uma oferta. Começou assim. Eu fui ficando, fui ficando, aí vieram aquelas coisas, né? Eu tenho dois filhos, o ranking caiu bastante, eu tinha que começar desde o começo. Eu ia ter que, assim, sabe? Já estava meio que programado eu voltar pra Argentina para fazer de novo uma pré- temporada maior depois desses torneios. E aí foi uma coisa que eu falei: "Puta, acho que é uma oportunidade boa que eu tô tendo aqui, é uma cidade que eu gosto e que eu gostei muito. Segurança, família, financeiramente também bem, então acho que é um lugar bom. E aí acabei ficando, ficando e estou lá (risos).

Você levou a família toda?

A família ainda está indo e voltando porque aí entra negócio de escola de filha, todas aquelas coisas, mas acho que no meio deste ano já vai estar todo mundo junto lá. A gente está um pouco alternando entre Brasil e EUA, mas contando tudo vai dar quase um ano que eu estou lá.

Pra terminar, qual o próximo objetivo agora, na vida? É realmente ficar mais com a família e assentar lá?

Não, eu quero dar um tempo ainda. Eu quero estar um tempo lá. E eu gosto muito de tênis. Tênis foi minha vida e transformou minha vida, e eu quero tentar ajudar pessoas também como fui ajudado em muitos momentos na minha carreira, entendeu? Então esse é o meu objetivo, sabe? O meu próximo objetivo. Acho que primeiro eu preciso acalmar um pouco, coisa que eu já fiz e estou fazendo. Acalmar um pouco, aprender um pouco também porque... né? Aprender um pouco fora ali como que é a vida normal, agora que não é a vida de tenista, mas eu espero num futuro próximo poder ajudar essa molecada com a, digamos, tentar fazer um caminho mais curto pra jogar um tênis legal.