Topo

Pole Position

"Abençoados" por recorde de GPs? Profissionais da F1 reagem a frase de Todt

Jean Todt, presidente da FIA - Nhac Nguyen/AFP
Jean Todt, presidente da FIA Imagem: Nhac Nguyen/AFP

Colunista do UOL

23/01/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O presidente da Federação Internacional de Automobilismo, Jean Todt, recebeu uma chuva de críticas após declarar que os profissionais que trabalham na Fórmula 1 deveriam "se sentir abençoados" por trabalhar no esporte mesmo que o número de corridas chegue a 25, como planeja a dona da categoria, Liberty Media.

As declarações mostraram um imenso distanciamento do que se discute atualmente dentro da Fórmula 1 e, não coincidentemente, tiveram impacto negativo nas mídias sociais na última semana. "Basicamente ele está dizendo que você deve ficar feliz por não ver seus filhos. É um ponto de vista ridículo, de alguém que chega nas corridas na sexta-feira e vai embora no domingo e não fica na pista por tanto tempo quanto as equipes", explicou o mecânico conhecido como Robert Dob, que trocou o trabalho na equipe de pista da Haas por uma vaga na fábrica, algo cada vez mais requisitado pelos membros das equipes devido ao esgotamento de se fazer a temporada completa, e em 2018 deixou o time norte-americano. Os mecânicos são, de fato, os mais sobrecarregados, uma vez que são os primeiros a chegar e últimos a voltar para casa (dependendo da corrida, os primeiros chegam no final de semana anterior ao GP e só vão embora na segunda-feira). "Muitos de nós que estamos fazendo isso há anos temos dificuldade em encontrar outros empregos, então não é um equilíbrio fácil", completou o mecânico.

Todt disse que quem trabalha na F-1 deveria se sentir privilegiado. "Acho que somos abençoados por estar em um mundo em que amamos o que fazemos. Temos a paixão, somos privilegiados, e qualquer pessoa que esteja na F-1 é privilegiada. Quando eu estava em outros cargos, trabalhava 18h por dia, seis ou sete dias por semana, porque eu tinha a paixão e queria o resultado. E então é claro que se você tiver uma família amada, eles vão entender, e você também não fará isso por toda a sua vida", disse o ex-chefe da Ferrari.

Gerard Quinn, com larga experiência administrativa no Mundial de Rali, hoje aposentado, também ressaltou que a experiência de Todt como presidente da FIA durante as corridas é bem diferente do resto dos profissionais, além do fato dele não comparecer nem a metade das etapas. "Isso veio de uma pessoa que tem acesso a um jatinho corporativo pago justamente com o dinheiro do esporte. Se não tivéssemos o apoio de nossas famílias, o automobilismo seria muito diferente. E a FIA deveria reconhecer isso."

Essa questão já havia aparecido, inclusive, entre os pilotos durante a temporada. Na última corrida do ano, em Abu Dhabi, no final de novembro, Valtteri Bottas anunciou que estava se divorciando da esposa, segundo ele, "devido aos desafios que surgiram com minha situação de carreira e vida" e ganhou o apoio do companheiro Lewis Hamilton, que está solteiro desde 2012. "Viajamos muito e ficamos longe de casa por períodos malucos, então isso gera um peso adicional que torna muito, muito difícil manter um bom relacionamento."

No entanto, mesmo os pilotos reconhecem que a maior carga recai sobre os mecânicos, cuja carga de trabalho é de pelo menos 10h por dia durante as corridas. "Sei que eles querem ganhar dinheiro, mas também têm de pensar nos profissionais que chegam na segunda-feira para montar tudo enquanto os chefões chegam no sábado ou até só no domingo e até voam de volta durante a corrida", lembrou Max Verstappen. "Para eles, não é um problema. Eles podem facilmente fazer 30 corridas. Para o resto das pessoas, são pelo menos cinco ou seis dias. Os mecânicos já podem dar entrada no divórcio direto se tivermos mais provas."

Questão é comercial

O campeonato da Fórmula 1 permaneceu por décadas contando com entre 16 e 18 corridas por ano, sendo que mais de 10 etapas eram realizadas na Europa. Porém, nos últimos anos, o dinheiro arrecadado com os contratos de TV diminuiu, obrigando a categoria a buscar recursos com a realização de mais provas, e é por isso que a Liberty Media, desde que assumiu a categoria, em 2017, tem como meta chegar a 25 corridas no ano, sendo apenas 8 ou 9 na Europa, onde as equipes estão baseadas.

A ideia, no entanto, enfrenta forte resistência das equipes, que acreditam que vão gastar mais com o aumento do calendário. "Entendemos a realidade comercial da F1 e sua necessidade de crescer, mas já estamos no ponto de saturação do pessoal. Não acho factível aumentar mais sem ter que contar com uma equipe reserva. Além disso, há um custo significativo de se mandar peças para as corridas e, se aumentarmos o número de corridas, teremos que aumentar a vida útil das peças", listou o chefe da Renault, Cyril Abiteboul. "Temos de focar em qualidade e valor, e não volume."

Mesmo sendo chefe da equipe que atualmente domina a F-1, tenho conquistado os últimos seis mundiais, Toto Wolff, que inclusive não foi ao GP Brasil ano passado para "cuidar de outros projetos" concorda com o rival. "Temos de pensar no bem-estar das pessoas que fazem parte do show. Temos membros que estão no limite do que é sustentável. Se aumentarmos ainda mais o calendário, teremos que rotacionar os profissionais, o que gera mais gastos."

O calendário 2020 da Fórmula 1 será o recorde da categoria, com 22 etapas. Para tanto, o número de dias da pré-temporada foi diminuído de oito para seis.