Milly Lacombe

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Não deveríamos estar falando do futuro de Endrick mas sim de seu passado

O Palmeiras entrou em campo pela semi-final do Paulistão usando uma camisa toda branca em nome de uma sociedade mais justa. A palavra sociedade vinha em grifos nas camisetas das crianças que pisaram no recém instalado gramado com o time. Parece mais uma daquelas manifestações inócuas que dizem coisas como "vamos nos amar mais e nos odiar menos" etc e tal mas eu queria argumentar que talvez não seja.

Falar em sociedade é falar em coletivo. Desde que o regime neoliberal varreu o mundo, a partir do final dos anos 70, temos figuras deploráveis como a primeira ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, avisando que não existe sociedade e tudo o que há é o indivíduo e a família. A esperteza de mantras como esse, repetidos com cada vez mais força por liberais, é a de que somos jogados uns contra os outros numa espécie de mundo macunaímico do cada um por si e Deus contra todos.

Vai lá e faz seu corre. Se você se esforçar, vai conseguir, diz o lema liberal. Não olhe para os lados. É você, Deus e sua família. Quem não conseguiu é porque não se esforçou. Me dá aqui deu dízimo, fique de joelhos e depois trabalhe, trabalhe, trabalhe porque sem dízimo Deus talvez não escute teu pranto.

É uma espécie de volta a um estado de natureza barbárico. Não existe tecido social, não existe solidariedade social. Com essa ficção devidamente internalizada nas pessoas, os governos podem trabalhar tranquilamente e com amplo apoio popular alargando o campo privado dos privilégios e encolhendo o campo público dos direitos.

O Palmeiras levou para o jogo a palavra sociedade. Colocou no debate a dimensão do coletivo. Usou parte de sua razão social para passar um recado importante: só existe a sociedade. Não é possível que uma pessoa se muito dê bem se há tantas na miséria.

Aqui o gancho para falarmos de Endrick.

Há menos de dez anos o garoto que hoje é unanimidade nacional estava em sua casa e tinha fome. Pediu comida para o pai que, abrindo a geladeira e os armários, teve que dizer, aos prantos, que não havia nada para comer. Endrick, com cinco ou seis anos, disse para o pai não se preocupar porque ele jogaria bola e daria dinheiro para a família.

Endrick estava certo. E por isso os abraços no pai logo depois de gols importantes são tão comoventes.

Mas e os outros Endricks que agora mesmo pedem comida a suas mães e pais e recebem como resposta que não tem comida na casa?

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Para cada Endrick que vence há dezenas de milhares que sucumbem. O noticiário do glamour só fala dos quem conseguem vencer essa corrida maluca da sobrevivência. Dos demais, fala-se nos cadernos de polícia: "ação policial mata onze em Paraisópolis", dizem as manchetes. Não têm nome. Não têm histórias.

É preciso ter cuidado com Endrick. Sobre suas costas tem uma responsabilidade que a maior parte dos que leem esse texto agora jamais poderão compreender de que tipo é. Endrick está começando. Fala em Deus e em sua Igreja porque são esses os símbolos que amparam muitos daqueles que nascem onde o Estado propositalmente só entra para matar.

Endrick é sobrevivente, é resiliente e tem tudo para ser o craque que já achamos que ele é. Mas o garoto e sua família não precisariam ter passado pelo que passaram. Seria mais bonito se ele apenas pudesse existir com todo o seu talento sem ter que arrastar imensas pressões e responsabilidades pelo caminho que vai construindo. Que o Palmeiras continue colocando grifo na palavra sociedade porque é isso o que temos que fazer nessa vida: ampararmo-nos uns aos outros para que nenhuma criança jamais precise olhar para geladeiras e armários vazios.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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