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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bolsonaro e os sinais de corrupção: por que não estamos nos escandalizando?

Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Carlos e Eduardo - Reprodução/Flickr
Jair Bolsonaro acompanhado dos filhos Flávio, Carlos e Eduardo Imagem: Reprodução/Flickr

Colunista do UOL

10/10/2022 13h46

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Jair Bolsonaro fundamentou sua carreira política esbravejando contra a corrupção.

Uma de suas primeiras obsessões, ainda vereador e depois deputado federal, era apontar funcionários fantasmas na Alerj e no Congresso.

Funcionário fantasma, claro, é aquele que recebe o dinheiro e não trabalha, não dá expediente, não faz nada pelo país.

Essa prática revoltava o jovem Jair, eleito vereador em 1988 aos 33 anos. Indignado, fazia discursos enfurecidos e repletos de moralidades.

Vamos adiantar esse filme dez anos.

Em setembro de 1998 o Diário Oficial registrou a mais nova assessora do deputado federal Jair Bolsonaro. Era Andrea Siqueira Valle, sua cunhada à época.

Andrea vivia em Juiz de Fora, Minas. Nunca morou em Brasília.

Andrea foi a primeira funcionária fantasma de Jair e de um esquema que, a partir dali, apenas cresceria.

Do livro "O Negócio do Jair", de Juliana dal Piva: "Meses antes da nomeação da irmã, Cristina [então mulher de Jair] aproveitou uma reuniãozinha de família e perguntou a seus pais e irmãos quem gostaria de um cargo no gabinete do Jair".

Vou fazer uma pausa para dizer que Dal Piva passou quase quatro anos investigando jornalisticamente Jair Bolsonaro.

Acessou documentos, depoimentos, evidências e provas que relatam detalhes da vida do homem que hoje é o presidente do país.

Voltando ao livro:

As pessoas presentes à reunião familiar dos Bolsonaro perguntaram o que era necessário fazer para ter o cargo. "Basta o número do CPF", disse Cristina emendando: o resto eu resolvo.

De acordo com a apuração de dal Piva, ficou estabelecido que ninguém precisaria cumprir nenhuma tarefa diária nesse "acordo de trabalho".

Cristina explicou que Jair só queria duas coisas: a entrega de grande parte do salário (em alguns casos de 90%) todos os meses e uma mãozinha na época das campanhas eleitorais.

De resto, conta Dal Piva, era aproveitar a mesada sem fazer esforço.

Aos poucos, os Siqueira Valle foram dizendo sim e entregando os CPFs para o Negócio do Jair.

Corta para 2003: Jair já coordena três gabinetes, que eram o dele, o de Carlos e o de Flávio, ambos eleitos a essa época.

Tinha a sua disposição mais de 60 nomeações. Eduardo, adolescente nessa época, só entraria no jogo em 2015.

Nomear funcionários fantasmas era fácil nos anos 2000.

Não havia transparência e saber o nome dos assessores de cada parlamentar no Congresso, assembleias e câmaras municipais exigia uma tarefa de investigação.

Só em 2009 uma norma veio a estabelecer os portais de divulgação de dados públicos. A norma que determinou a divulgação dos salários desses assessores é de 2011.

Foram, portanto, Lula e Dilma que autorizaram a transparência.

O esquema do Jair foi crescendo sem parar. Não demoraria para alguém se indignar.

André, um dos funcionários fantasmas que fazia parte dos parentes de Cristina, passou a desabafar com amigos que aquilo era errado.

Ele observava as caixas de dinheiro guardadas na casa de Jair e de Cristina.

Volto à apuração de Dal Piva, agora na voz de André:

"Você não tem ideia de como é. Chega dinheiro? Você só vê o Jair destruindo pacotão de dinheiro. Toma, toma, toma. Um monte de caixa de dinheiro na casa, você fica doidinho".

Mas não era bagunça, pessoal. Havia regras.

No começo a ordem era apenas a de devolver ao Jair o percentual combinado.

Depois Jair e Cristina passaram a exigir os benefícios também: vale-alimentação, auxílio-educação, restituição do imposto de renda.

Não custa lembrar que estamos falando do dinheiro público, certo?

No esquema, a orientação era a de que cada integrante sacasse o salário mensalmente.

Mas não era para tirar de uma vez, era para fracionar em saques de 500 ou de mil reais.

Tudo está bem detalhado no livro de Dal Piva - O Negócio do Jair.

Não demorou para que essa dinheirama fosse transformada em imóveis, claro.

Muitos deles comprados em dinheiro vivo.

Em 2003, o estudante Carlos Bolsonaro comprou um apartamento na Tijuca no valor de 150 mil reais e pagou em grana.

O casamento com Cristina - mãe de Renan - acabou depois de dez anos, em 2007. Foi tempo suficiente para o casal construir um bom patrimônio.

Documentos usados durante o processo de separação indicam que Jair e Cristina tinham imóveis totalizando três milhões de reais.

"Considerando os carros, as aplicações e as joias, o total ultrapassava quatro milhões"(Dal Piva).

Desde então, o negócio do Jair não parou de crescer.

Recentemente, soubemos através do UOL e da mesma Dal Piva que a família possui 101 imóveis, dos quais 51 foram comprados em espécie. Um negócio e tanto esse do Jair.

Mas vejam: não tem vida parlamentar honesta que seja capaz de acumular esse tipo de riqueza.

O livro de Dal Piva sistematiza o esquema dos Bolsonaro em detalhes escandalosos.

Estava tudo ali antes de Bolsonaro ser candidato.

Certamente o ex-juiz Sergio Moro, que foi ministro de Bolsonaro, não teve acesso a nenhum desses documentos que Dal Piva consultou.

São centenas de páginas de materialidade.

Ao longo de mais de dois anos em que o caso esteve tramitando, diz Dal Piva, as provas reunidas eram tantas que elas passaram a se deslocar pelos corredores do MP em um carrinho,

Mas o grande Sergio Moro, que foi ministro de Bolsonaro, não teve tempo para entender o assunto.

E também não leu o livro de Dal Piva porque, tivesse lido, estaria indignadíssimo esbravejando por todos os cantos com tamanhas evidências de indecência com o uso do dinheiro público - sua incansável luta, todos sabemos, é contra a corrupção.

Sabemos que ele não leu porque o ex-juiz declarou recentemente seu apoio a Bolsonaro no segundo turno.

Na melhor das hipóteses, Moro apenas não tem a capacidade de se articular cognitivamente a ponto de associar fatos.

Na pior das hipóteses, você me digam o que move o tal do super-herói na luta contra a corrupção.

O trabalho de Juliana dal Piva é digno de prêmios, que certamente virão.

Quando fala do caso, a jornalista faz questão de dizer que pegou o bastão da mão de outros jornalistas, que foram atrás de suspeitas e puxaram o fio das investigações.

Juliana teve coragem e paciência para pegar as peças soltas e ir juntando: relatório do COAF, depoimentos em on e em off, evidências, provas.

O que seria da eleição de 2018, pergunta Dal Piva durante uma entrevista que deu ao podcast da Ilustríssima para Eduardo Sombini, se as pessoas soubessem do relatório da COAF ainda antes da eleição?

Para lembrar, o relatório do COAF (Conselho de Controle de Atividades Finaneiras) apontou uma movimentação atípica de 1,2 milhão de reais nas contas de Fabricio Queiroz, assessor do Flávio Bolsonaro. Ele foi o começo de tudo.

Uma pausa: O Coaf é instrumento de combate à corrupção que foi criado em 1998, por FHC, e, em 2003, já com Lula, foi vitaminado: foi Luiz Inácio que estabeleceu a norma que obriga os bancos a informar ao órgão quaisquer saques e depósitos acima de 100 mil.

Voltemos ao fio de ideias.

Depois desse relatório do Coaf, promotores apresentaram uma denúncia criminal contra Flávio.

O MP protocolou então um documento de 291 páginas que apontava Flávio como líder de uma organização criminosa que operava em seu antigo gabinete da ALERJ: documentos, depoimentos, dados bancários e telefônicos e um HD com vídeos.

Nessa acusação - apenas contra Flávio - o desvio era da ordem de 6,1 milhões de reais dos cofres públicos do estado.

A denúncia foi apresentada em sigilo, mas o presidente da república teve acesso a ela, não se sabe como.

A revelação da movimentação chamou a atenção de muita gente.

Dal Piva arregaçou as mangas e foi apurar, descobrindo o real tamanho do esquema. Ou parte dele, porque pode ser ainda maior.

Passou os últimos quatro anos fazendo basicamente isso.

Desde então, teve que ser insistente para chegar a algumas das provas, driblar barreiras, contornar silêncios e entraves.

Teve também que lidar com anulação de provas relativas ao caso.

Foram anuladas provas importantes que envolviam a quebra de sigilo de Flávio e Queiroz.

Além disso, houve tentativa de censura de algumas de suas matérias para o UOL.

O relatório do Coaf, que mostra como os funcionários davam dinheiro a Queiroz e mostra também o dinheiro sendo repassado a Michelle, esta de pé.

A confissão do Queiroz está de pé.

Segundo Dal Piva, há dados consistentes para pedir nova quebra de sigilo.

Mas a demora para que isso seja feito é intrigante.

É natural imaginar que, Bolsonaro perdendo a eleição, possamos esperar que um novo pedido de quebra de sigilo seja feito para que nos aprofundemos.

Mas é claro que sem o acesso fica mais difícil fazer o caminho do dinheiro e trazer mais verdades à tona.

Seria recomendável que todo eleitor e eleitora lessem o livro de Juliana dal Piva - especialmente aquele eleitor tão preocupado com a corrupção e com os desvios do nosso dinheiro.

Enquanto isso, seria também importante que nós, da imprensa, parássemos de chamar de rachadinha.

Esse nome doce e até gentil não representa o tamanho do negócio, nem abarca as indecências.

Como lembra Dal Piva: "O mau uso do dinheiro público é peculato, o uso sistemático disso é organização criminosa e quando você pega dinheiro publico, desvia e usa para construir patrimônio é lavagem de dinheiro.

Vamos resumir: corrupção.

Um esquema que, pelos indícios, funciona há três décadas.

A população brasileira tem o direito de saber quem é Jair Bolsonaro, um político que em 27 anos como deputado federal teve apenas um projeto aprovado o PL 2.514/1996, que estende o benefício de isenção do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para bens de informática e automação.

Agora temos algumas ideias de por que ele não teve tempo de trabalhar em outros projetos que pudessem ser aprovados.

Tenho certeza que, diante de evidências como essas tantas que estão no livro, muitos mudariam o voto.

Quem não quiser ler, pode então acessar o Podcast: "A Vida Secreta do Jair", da série UOL investiga, e com a mesma Juliana dal Piva.

Você tem mais 19 dias para saber quem é o atual presidente.