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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Milly: Do futebol total ao futebol totalitário

Johan Cruyff com a camisa da Holanda na Copa do Mundo de 1974 - Werner Baum/Getty Images
Johan Cruyff com a camisa da Holanda na Copa do Mundo de 1974 Imagem: Werner Baum/Getty Images

Colunista do UOL

10/01/2022 18h18

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Na década de 70 veio da Holanda uma das maiores revoluções na forma de jogar o futebol. O treinador Rinus Michels foi o arquiteto do que se chamou Carrossel Holandês ou Futebol Total. A inovação fazia com que os jogadores trocassem rapidamente de posição, corressem sem parar, avançassem em bloco. Era, além de bonito de se ver, altamente competitivo. Os adversários ficavam atordoados com tanta movimentação. Não se pode dizer que a encantada seleção brasileira de 70 jogou assim, mas é certo que aquele time tenha inspirado Michels. E é certo também que as nossas seleções de 82 e 86, e o São Paulo de Telê, beberam da fonte que o holandês fez jorrar. Porque a vida é essa troca constante de ideias e inspirações. E ninguém faz coisa alguma sozinho.

Desde então, até Pep Guardiola construir o seu Barcelona, um time organizado nesse sistema carrossel e ainda mais intenso do que o de Michels, não houve grandes inovações criativas na forma de se jogar. Muito pelo contrário. Mergulhamos em conservadorismo e na caretice, que se refletiram na industrial formação de volantes e sistemas defensivos, e no sumiço dos pontas, dos meias, do drible e de ataques criativos.

O futebol total foi saindo lentamente de cena e em seu lugar começamos a ver o futebol totalitário, que é esse futebol todo planejado, articulado em planilhas, controlado em todas as suas formas. Não por acaso, tudo isso foi acontecendo enquanto clubes eram transformados em empresas e vendidos a magnatas, muitos deles vindos, de fato, de regimes totalitários.

Mas o totalitarismo a que me refiro aqui é esse estado de coisas que transforma todas as instituições - escolas, hospitais, Igrejas, clubes - em empresas. O ideal empresarial acima de tudo. Um ideal que é, além de econômico, moral porque a ideia é a de que, fora desse ideal, só existe o caos, a anarquia, a barbárie, a indecência ou, pior, o comunismo.

É um totalitarismo que se reflete em idênticos esquemas de jogo, no tal do espelhamento das táticas, na repetição exaustiva das estratégias, nas faltas cometidas em excesso. A última inovação nesses campo de tédio foi o pobre coitado que fica deitado no chão atrás da barreira. Não por acaso, uma inovação defensiva e altamente desmoralizante para quem deita, para quem vê, para quem narra, para quem joga. Até a bola, envergonhada, se recusa a acertar o corpo estirado ao chão.

É o totalitário do totalizante, do igual, do homogêneo.

Quando esse ideal empresarial que mede as coisas por seu desempenho, performance, diagnósticos, processos, etapas, perdas e ganhos passa a dominar todas as áreas de nossas vidas, incluindo aí nossas vidas pessoais (a gente investe em relacionamentos, a gente ganha ou perde tempo, a gente administra uma relação amorosa) estamos vivendo uma nova espécie de totalitarismo.

O futebol totalitário é esse que nos enxerga como consumidores e não como torcedores. Que chama nossos estádios de Arenas; passe de assistência, mobilidade de flutuação, torcedor de sócio. Um tipo de sociedade que é corriqueira no capitalismo: associados no prejuízo, separados no lucro. Uma esperteza que socializa a dívida e privatiza os ganhos.

Mercado da Bola virou editoria no jornalismo. Quem nossos clubes vão comprar? Quem vamos vender? Quanto tempos em caixa? Estamos no lucro? Lucro pra quem e por quê? Um time precisa dar lucro ou será que poderíamos ser associações sem fins lucrativos? Quanto vale seu time? Por quanto seria justo vendê-lo a um bilionário? Existe preço para sua paixão? Interessa saber da onde vem o dinheiro que será usado na privatização da camisa que você chama de sua?

Todas essas são perguntas legítimas. E a elas podemos somar outras: será que um grande time não pode nascer quase que exclusivamente da base? Olha o que jogam os garotos da base, a Copinha tá aí para abrir nossos olhos. Para onde vai tanto talento se a gente quase não os vê nos times de cima? Quem são os grandes empresários do nosso futebol? Quantos desses garotos já não estão negociados?

O Brasil é uma usina nuclear de talentos. Cada time das séries A e B têm estrutura para montar um elenco profissional feito quase que integralmente da base. Time é entrosamento, mais do que craques raros. É jogar junto. É treinar junto. É tabelar por instinto. O que nos impede de romper com a lógica colonizadora e criar a nossa forma de tratar o jogo?

Precisaríamos de um clube corajoso para encarar essa. Temos esse clube? Temos esses dirigentes? Talvez não, infelizmente. E, nesse caso, em pouco tempo assumiremos de vez a integralidade da rigidez do futebol totalitário. Pior: acreditando estarmos fazendo um grande negócio.