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Milly Lacombe

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que a gente quer da seleção brasileira?

Colunista do UOL

12/07/2021 15h49

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A pergunta do título tem várias possibilidades de resposta. Alguns dirão que o que a gente espera de uma seleção é a vitória a qualquer custo. Outros dirão que de uma seleção queremos coragem, garra, entrega. Outros ainda poderão alegar que uma seleção precisa refletir o que somos enquanto nação, precisa se deixar inundar de aspectos que nos representem, que sejam fiéis a nossa cultura.

Talvez estejam todos certos, mas eu acredito que existam mais coisas que uma seleção pode ser e conquistar.

Para todos os que se convencem de que o futebol é maior do que a própria vida - ou talvez a melhor metáfora para essa nossa experiência - fica fácil argumentar que de uma seleção a gente espera algum tipo de reconciliação com a difícil e desafiadora experiência de estarmos vivos.

Em tempos de paz e de justiça social, essa reconciliação se dá pela forma como uma seleção se comporta em campo, mais do que pelos resultados propriamente ditos. Vencer ou perder ficaria em segundo plano diante da filosofia de jogo.

Um time que jogue de forma alegre, com toque de bola, triangulação, buscando o gol e ao mesmo tempo se defendendo de forma coletiva é um time que nos encantaria, sem dúvida. Eu acho que uma equipe que assim se comportasse seria um verdadeiro orgulho nacional.

Só que vivemos uma época em que o medo e a segurança são os afetos mais mobilizados, social e esportivamente, e isso faz surgir times orientados para se defenderem. Nossa seleção, a de Tite e de Neymar, joga assim. Não é bonito, não é alegre, está longe de ser entretenimento, mas é competitivo.

Mas o que esperamos de uma seleção em período de guerra? Antes de seguir a reflexão, precisamos estabelecer que estamos em período de guerra e não há aqui exagero ou hipérbole. Estamos sendo atacados pelo governo que elegemos.

Não é uma novidade para quem mora em nossas periferias e favelas, que são atacadas por governos democraticamente eleitos desde sempre e sem que tenha havido até aqui uma exceção. Mas o que acontece agora é uma guerra em maior escala: somos todos e todas vítimas de um governo genocida, e o termo é usado de forma técnica. Não resta mais dúvida de que a administração de Jair Bolsonaro e de Paulo Guedes partiu para o bombardeio contra a população brasileira, que está sendo eliminada via bala, via fome e via vírus.

Nesse cenário, o que queremos de uma seleção brasileira? Mais do que futebol, evidentemente.

Queremos, para começar, que ela nos resgate. Que ofereça uma saída para a situação trágica que enfrentamos. Que se coloque ao lado da população para quem diz jogar, que seja a voz dos que foram silenciados. Queremos que a seleção nacional use o esporte mais popular do país para chamar atenção para o que está acontecendo. Queremos e esperamos que usem o poder que conquistaram para que parem de nos matar.

Nunca foi só futebol. Nem por um dia. Trata-se de um jogo que se popularizou justamente porque é, acima de tudo, político.

A escolha de um time de futebol já está emaranhada de política. Todos sabem o momento em que optaram por um time, e sabem perfeitamente que são aspectos considerados políticos que nos unem a esse time. É ato político usar a camisa do seu clube, é ato político a forma como torcemos, a forma como a gente se relaciona com as cores do time que chamamos de nosso.

Não há como separar o que nasceu misturado. Futebol é política e, justamente porque essa relação é inevitável, o genocida de nome Jair Bolsonaro faz uso político da seleção brasileira masculina de futebol.

Seria, por isso, muito importante que esse time tivesse se colocado contra o genocídio. Que se indignasse. Que falasse e jogasse por nós. Mas o time, além de não fazer isso, já está eternizado em fotos alegres e festivas ao lado de um presidente que, o tempo mostrará, será condenado por crimes contra a humanidade.

Uma seleção que se acovarda a esse ponto está jogando para quem? Uma seleção que posa sorridente ao lado de um presidente que foi diretamente responsável pela morte de quase 400 mil pessoas (número de mortes que estudos começam a apontar que teriam sido evitadas caso o governo tivesse agido para interromper o contágio e não para aumentá-lo) entra em campo por quem?

Não há, para o bem ou para o mal, como separar política e futebol. Tudo a respeito do jogo é político, até mesmo os apequenados e infantis comentários daqueles que pedem para que não misturemos política e futebol. Se política e futebol não estivessem amalgamados não haveria uma Confederação, não haveria campeonatos, não haveria sequer times. Se não houvesse ligação radical entre política e futebol a camisa amarela não seria hoje símbolo máximo de um golpe de estado.

Tudo que fazemos na vida contém política. Dizer "não tô nem aí para política" é um ato político. Um ato que podemos chamar de burro, de alienante, de pouco informado, mas ainda assim um ato político.

Fazer arminha com a mão antes de entrar em campo é ato político alinhado com o fascismo que nos consome. Posar sorridente ao lado de um presidente que antes de ser eleito disse a uma mulher "só não te estupro porque você não merece", e, depois, em uma palestra comparou negro a gado é um ato político. Não se manifestar quando a população do país que você diz defender com muito orgulho e com muito amor está sendo exterminada é ato político. Silenciar quando seu chefe é acusado de violência sexual é ato político. Escolher tatuar seu corpo é ato político. Descolorir o cabelo é ato político. Celebrar gol sem camisa para mostrar o corpo sarado é ato político.

Por tudo isso, a seleção de Tite já gravou seu nome na história. Foi a seleção que disputou uma eliminatória e uma Copa América durante um genocídio e que escolheu silenciar. Vai ficar registrado como o time que entrou em campo em época de guerra e se colocou, sorridente, ao lado do inimigo - como o elenco e a comissão técnica que estabeleceram um pacto com os assassinos.

Pelos piores motivos, pelas mais baixas, desumanas e vulgares razões, a seleção de Tite e de Neymar não será, jamais, esquecida.