Como uma touca se tornou uma conquista de direitos humanos no esporte
O esporte se depara permanentemente com conquistas. Algumas, dão mais cliques que outras. E isso não está diretamente ligado a importância de cada uma delas. Trago aqui um exemplo de uma vitória importante dos direitos humanos em universo esportivo que teve pouca repercussão.
Ano passado a Federação Internacional de Natação (FINA) aprovou o uso de uma touca especial para cabelo afro em competições internacionais. Conhecido como 'Soul Cap', o produto chegou a ser proibido nos Jogos Olímpicos de Tóquio, logo ali atrás. A proibição gerou uma grande mobilização de atletas, e de movimentos de direitos humanos, que afirmavam que a proibição era discriminatória e agredia direitos universais.
A pressão surtiu efeito. Depois da liberação ainda restrita de 2022 , recentemente, a Soul Cap recebeu luz verde do principal órgão regulador da natação para ser usada também nos principais campeonatos, o que parece ser um grande passo para trazer mais diversidade a um esporte predominantemente branco.
Você terá que olhar além das Olimpíadas e dos campeonatos mundiais para identificar seu maior impacto.
A touca de silicone superdimensionada , projetada especialmente para nadadores negros com cabelos naturais volumosos, já está deixando o deck da piscina mais acolhedor na base.
Interessante o comunicado da Federação sobre a decisão. Quando ele foi vetado, a justificativa foi de que a touca não seguia "a forma natural da cabeça".
Quando da aprovação, a FINA escreveu: "promover a diversidade e a inclusão está no centro do trabalho da Fina, e é muito importante que todos os atletas aquáticos tenham acesso a roupas de banho apropriadas", escreveu.
Esse, na verdade, tem que ser um compromisso permanente de todo o movimento esportivo. Dentro desse processo, a ciência pode ter um papel importante, como foi com o uso do véo islâmico, o hijab, no esporte e dessa vez com a touca para afro descendentes.
A nova regra privada do esporte vai na direção da proteção de direitos humanos e foi construída através da pressão de movimentos sociais. A decisão é mais uma a favor dos direitos humanos quando confrontado com regras privadas do esporte.
E se fosse no Brasil?
Se fosse por aqui, mais uma vez as irritações provocadas pelas regras estatais trariam aprendizado ao movimento esportivo.
Bastaria trazer o art. 5°, VIII, da Constituição Federal que adverte que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política [?]" . E na sequência, buscar a Lei de Introdução ao Direito, logo no início, no art.5, que explica que "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
A literalidade da regra esportiva é sempre um caminho perigoso. Se ela cria a exigência de um uniforme, a fim de manter equilíbrio esportivo, ajudar o evento e facilitar a vida da arbitragem, esse caminho não pode conflitar com direitos humanos protegidos, como o da "não discriminação" ou da liberdade religiosa.
Mas lembrei do hijab
As mulheres muçulmanas usam o hijab, um véu islâmico que cobre cabelo e pescoço. No dia a dia e também na prática esportiva. No Irã, por exemplo, o uso do véu pelas mulheres que se expõem publicamente é uma imposição do ordenamento jurídico. E isso trouxe inúmeros problemas às federações esportivas do país. No futebol, no judô, no basquete, no boxe.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberO problema é que regras esportivas de várias modalidades vedavam o uso do hijab em competições, alegando que ele poderia comprometer a saúde dos atletas, aumentando o risco de lesões na cabeça e no pescoço. O cenário esportivo ajudava a afastar ainda mais as mulheres muçulmanas de competições esportivas internacionais. De novo, um conflito entre Lex Sportiva e Direitos Humanos.
Depois da pressão de coletivos globais de defesa de direitos humanos e com o auxílio da tecnologia, os véus foram adaptados à prática esportiva, diminuindo a força dos argumentos daqueles que defendiam que ele era perigoso e ameaçava a saúde dos atletas. O esporte cedeu e o hijab foi ganhando espaço no esporte mundial.
Fifa em 2014, logo depois a Federação Internacional de Basquete também permitiu o uso em competições profissionais. Na Rio 2016, Ibtihaj Muhammad foi a primeira atleta americana a competir com o véu. Ganhou medalha de bronze na esgrima e subiu ao pódio de hijab.
Ou seja, o caso da touca é mais um em que a Lex Sportiva e os Direitos Humanos - depois de algumas irritações - caminham na mesma direção. Ao conciliar direitos humanos com a prática esportiva, o esporte dá um bom exemplo para a sociedade de como é possível, com diálogo, bom senso, tecnologia e flexibilidade, encontrar boas soluções também para importantes conflitos da nossa sociedade.
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Seja especialista estudando com renomados profissionais, experientes e atuantes na indústria do esporte, e que representam diversos players que compõem o setor: Pós-graduação Lei em Campo/Verbo em Direito Desportivo - Inscreva-se!
Deixe seu comentário