Julio Gomes

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Indústria do futebol é voraz demais para parar por causa da dupla Grenal

O texto abaixo foi produzido pelo colega Napoleão de Almeida, narrador e apresentador do Bandsports e da RedeTV! É uma visão impopular. Mais do que concordar que o "show não pode parar", Napoleão traz uma visão quase conformista: não há tragédia grande o suficiente para fazer a indústria do futebol parar.

Por Napoleão de Almeida

O "Sala de Redação" é um dos melhores debates esportivos do Brasil, tendo a Dupla Grenal como tema central, nunca se exime de opiniões fortes dentro e fora de campo. É uma tradição gaúcha, suspensa do ar desde 2 de maio na Rádio Gaúcha. É impossível falar em futebol no Rio Grande do Sul. O Estado está debaixo de água, a capital Porto Alegre vive seus piores dias desde há muito, consequência do desdém com as políticas ambientais de quem não acredita em aquecimento global e afins e da inação da própria prefeitura, que deixou de investir em planos contra enchentes em 2023 para comemorar superávit, como a Folha de S.Paulo bem alertou.

"O futebol é a coisa mais importante entre as menos importantes do Mundo", dizia o italiano Arrigo Sacchi na frase popularizada no Brasil por Milton Neves. Nós o amamos, você está lendo isso aqui por conta dele. E nós bem sabemos: ele é voraz. A indústria é pesadíssima. O futebol, e não o pop, é que não poupa ninguém.

Ao olhar o desastre em Porto Alegre e elencar prioridades, definitivamente o futebol não está entre elas. É impensável imaginar que os 20 dias elencados pela CBF para que os clubes gaúchos "se organizem" sejam suficientes. Nem precisa ser gênio, basta ver as fotos da cidade. Até o Guaíba voltar pra casa serão dias e dias, com mais chuva no meio. Grêmio, Inter, Juventude e os demais clubes das Séries C e D não têm mesmo condições de fazer nada na região. Como já se disse, não podemos pedir para Diego Costa, Caíque, Rochet e outros tantos simplesmente irem treinar - nem há local lá para isso.

Porém, a vida segue longe de Porto Alegre. E não apenas em Curitiba, São Paulo, Salvador, Goiânia ou qualquer outra praça da Série A; segue em todo o continente. Tanto é assim que nesta quarta mesmo o Botafogo jogou no Rio com faixa de solidariedade aos gaúchos, devidamente agradecida nas redes. Teve jogo em Caracas, Calama, Bogotá; teve jogo em toda a parte durante a semana. O negócio é muito potente para parar.

Em 2020, quando nenhum lugar no mundo era seguro para qualquer atividade, pois o vírus que matava 4 mil pessoas por dia no Brasil não encontrava a barreira vacinal, o futebol voltou. Renato Portaluppi, técnico do Grêmio, foi um dos primeiros a puxar a fila: "O futebol não pode parar", dizia, alegando segurança nos protocolos. Não havia lugar seguro para viver, mas o futebol deu seu jeito em nome da indústria.

Jogar é o de menos para os gaúchos: hoje, eles não têm onde conviver. Aqui falo apenas do futebol mesmo, problema micro dentro do todo. Não há onde treinar, não há onde morar, não há como locomover-se. Daí a ideia de clubes como Athletico, Flamengo, Palmeiras, São Paulo e Corinthians em propor abrigos em seus CTs para os times da região retomarem as atividades. Notem: não há filantropia, é negócio.

Se Renato defendia que o futebol era seguro diante de um inimigo invisível, por que não seria então seguro mover essas estruturas para locais sem o mesmo desastre ambiental no Rio Grande do Sul? É seguro estar em Criciúma, Chapecó, Curitiba, Cascavel, Londrina, São Paulo ou qualquer outra base longe das cheias. Esse problema não é exclusivo dos brasileiros. Há mais de dez anos, o Shakhtar atua longe de casa, já que Donetsk está no centro dos conflitos com a Rússia. A própria Ucrânia atua longe da Ucrânia: foi assim que se classificou para a Eurocopa deste ano. Estará lá, representando a bandeira enquanto ucranianos morrem nos conflitos. É em toda a parte: New Orleans foi devastada pelo Katrina em 2005, mas os Saints, da NFL, saíram para cumprir seus jogos fora da cidade.

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Os clubes e a CBF deram 20 dias aos gaúchos, mas seguirão jogando seus jogos. É pouco tempo. Nada, diante do caos. E em 20 dias haverá uma nova conversa, obviamente os gaúchos ainda estarão com problemas muito maiores e o campeonato seguirá, com diversos jogos em atraso. E então o negócio irá agir para que haja a retomada. Se por um lado há solidariedade irrestrita com o povo gaúcho, é preciso saber que o restaurante do Mineirão ou a vendedora das barraquinhas de acarajé no Barradão precisam do negócio andando para viver.

A Conmebol, idem: ela precisa entregar uma primeira fase de classificação diante da Copa América que se avizinha. Ela, que já deslocou clubes pelo continente para fechar suas tabelas, não deve hesitar em repetir a dose. O Del Valle, por exemplo, se viu forçado a atuar contra o Grêmio em Assunção pelas restrições públicas da Covid-19 no Equador. A Conmebol mesmo eliminou os mexicanos San Luis e Chivas das oitavas da Libertadores 2009, vencida pelo Inter, por conta da impossibilidade de se jogar no México pelo surto de AH1N1.

O negócio irá gritar. Agora é hora de solidariedade e ações em prol, mas em breve haverá o apelo para que os gaúchos saiam e cumpram seus jogos, talvez num intervalo surreal de poucos dias. Lógico que há a questão do exemplo - aquele que faltou na pandemia, mas que pode ser mostrado agora, de que há coisas mais importantes. E aqui escreve um narrador que se recusou a gritar o gol do CSKA contra o Spartak no dia da invasão russa na Ucrânia, que deixou um programa no ar para acompanhar o nascimento do filho, que, em suma, entende que há mais que o futebol, que a empatia é fundamental. Mas os últimos anos mostraram que a indústria é pragmática.

Os clubes poderão alegar pressão, dizer que Landim, Petraglia, Leila e outros são os vilões da volta, mas há mais por trás. Sem receitas, como Inter, Juventude e Grêmio irão pagar seus compromissos? Sem jogos, sem renda, nem na TV, nem na camisa. Os atletas irão ceder seus salários? Não foi o que vimos em casos anteriores. A CBF tem obrigação de dar suporte, investir para a acelerar a recuperação dos clubes, bem como os Governos Federal e Estadual no âmbito macro. Mas irá exigir que a coisa ande. Afinal, como já sabemos, o futebol é voraz.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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