Julio Gomes

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Na noite da festa do Flu, morreu Da Lupa e, com ele, o segredo de 2013

Se a Portuguesa está como está hoje, é por causa das gestões amadoras, ora burras, ora criminosas, que feudos familiares comandaram ao longo das décadas. Meia dúzia de famílias ocuparam e ocupam até hoje os cargos de conselho, de direção e fizeram dinheiro em cima do clube. Um clube que era enorme no século passado e foi minguando, tanto no âmbito social quanto no futebol. Ir ao Canindé hoje é uma tristeza completa. As piscinas não existem mais, o bar dos bolinhos de bacalhau não existe mais, o estádio está caindo aos pedaços.

Quem quiser fazer uma lista de vilões, terá de colocar no topo dela um sujeito chamado Manuel da Lupa, que morreu ontem à noite.

Não é o único, sem dúvida. Mas é o principal. Entrevistei Da Lupa uma vez apenas. Quando eu era um estudante e fazia um mini documentário de conclusão do curso de jornalismo sobre a Portuguesa. Era o ano de 2001 e ele era Diretor Financeiro, todos sabiam que seria o próximo presidente. Saí absolutamente espantado da sala. As ideias arcaicas, a tosquice - essa que é a palavra -, a falta de visão, de profissionalismo me deixaram com a certeza que o futuro da Portuguesa seria sombrio.

De fato, as principais dívidas que afundam o clube até hoje são as trabalhistas contraídas justamente naquela época, a virada de século. Depois de uma segunda metade da década de 90 em que o clube voltou a ter grande protagonismo, as famílias se lambuzaram no dinheiro e as finanças do clube foram trucidadas. Subiram verdadeiros impérios imobiliários na zona norte de São Paulo e todo mundo sabe disso no Canindé. O último grande jogador do clube, a última possível grande venda, seria a de Ricardo Oliveira. Saiu de graça (na Justiça) para o Santos e, se bobear, o clube ainda deve para ele até hoje.

A Lusa caiu para a Série B nacional pela primeira vez em sua história no ano seguinte da minha entrevista com Da Lupa, já em 2002. O futuro tenebroso estava mais perto do que parecia. Ele já mandava no clube, mas assumiria, de fato, a presidência, anos depois. Foi presidente por três mandatos! De 2005 a 2013. Os anos em que a Portuguesa caiu pela primeira (e depois segunda) vez para a Série A2 do Paulista. Os anos de decadência absoluta que levaram o clube até o momento em que ele está hoje.

Mas a queda, claro, não foi linear. Ela teve um grande e marcante momento: o Brasileiro de 2013. Depois de subir em 2011, a Portuguesa jogou o Brasileiro de 2012 pela primeira vez em sua história em posição de "disputar para não ser rebaixada". Nunca havia sido assim no século passado. Podia não ganhar títulos, mas competia por todos eles. Agora, não. Tinha virado um clube pequeno de verdade. Se segurou em 2012 e se segurou no campo em 2013, mas veio a escalação irregular de Héverton no último jogo (que nada valia), a perda de pontos e o rebaixamento.

Aquele foi o último ato de Da Lupa, que encerrava o terceiro mandato. Aí, as histórias que ouvi são muitas e preciso tomar cuidado com as palavras aqui para não levar um processo na cabeça. Mas está muito claro que a Portuguesa não cometeu um simples erro, que aquilo foi premeditado. O julgamento na calada da noite, às vésperas da rodada final, dando a Héverton um gancho de dois jogos por um cartão vermelho absolutamente corriqueiro muitas rodadas antes, em um lance que sequer era de expulsão, foi apenas parte do teatro. Um teatro que, estou certo disso, envolveu muita gente e foi montado ao longo de semanas, não de horas. E que não teve participação do jogador e nem do técnico da vez, Guto Ferreira. Em que momento a informação de que Héverton estava suspenso daquele jogo que nada valia contra o Grêmio foi bloqueada e não chegou ao Departamento de Futebol?

Talvez Manuel da Lupa soubesse explicar ou pudesse explicar. Mas o segredo morreu com ele ontem. Um sujeito que passou 10 anos, os últimos 10 anos da vida, sem ser importunado pelas autoridades ou pela própria Portuguesa, que é quem deveria ter feito uma sindicância séria para apurar os fatos, O presidente que sucedeu Da Lupa, Ilídio Lico, outro das já citadas famílias, resolveu jogar tudo para baixo do tapete. A Lusa caiu para a Série C, depois para a D e "puf", desapareceu.

Quem comprou a Portuguesa? Por quanto? Como? Houve o envolvimento de Da Lupa? São as perguntas que nunca serão respondidas sobre o tapetão mais infame da história do futebol brasileiro. Mas tudo bem, segue a vida, a Portuguesa só importa para um punhado de torcedores abnegados que tiveram um clube um dia para torcer. Muitos hoje, compreensivelmente, sequer se esforçam para que seus filhos deem continuidade a isso, porque é muito sofrimento.

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Um dia, me disseram que para saber toda a história eu teria de procurar o J Hawilla, ex-jornalista, ex-presidente da Traffic, uma pessoa com muita influência no futebol brasileiro. Ele era réu confesso do maior caso de corrupção da história do futebol, havia passado cinco anos nos Estados Unidos, devolveu milhões de dólares em multas e teve um triste fim de vida. Nunca fui atrás do homem que, me garantiram, sabia de tudo, de forma detalhada, sobre o que havia acontecido em 2013. Hawilla morreu em 2018, aos 74 anos.

Os mesmos 74 anos que tinha da Lupa quando morreu ontem, na mesma noite em que o Fluminense ganhava o título da Recopa Sul-Americana, em um Maracanã lotado e em festa. Não sabemos e nunca saberemos se o Fluminense teve alguma coisa a ver, direta ou indiretamente, com o que aconteceu em 2013. Nada nunca foi provado, até porque não foi investigado. Eu custo a acreditar que dirigentes de clubes se arrisquem neste sentido. Essas coisas são mais sofisticadas e feitas através de outro tipo de gente, de "emissários", de "intermediários", são sombras. Havia outros clubes que poderiam ter sido beneficiados, não apenas um.

Sabemos apenas, no entanto, que o Fluminense acabou sendo o grande beneficiado, pois caiu no campo e foi alçado no tribunal, sem mérito algum. Isso não é opinião e nem acusação, isso é fato, é uma constatação. Se tivesse caído em 2013, na véspera da saída da Unimed, que deixou terra arrasada, como o clube teria se recuperado? O que teria virado? Pouco importa hoje. Mas não deixa de ser irônico que a morte da Da Lupa tenha ocorrido na mesma noite de uma grande festa tricolor.

Eu já não tinha esperança alguma de que a verdadeira história de 2013 viesse à tona um dia. Mais gente que estava envolvida naquele episódio já tinha morrido, o clube escolheu não investigar, o Ministério Público paulista escolheu parar de investigar (e nunca explicou por quê), a imprensa, que vivia e vive sua própria crise, resolveu não investigar, e o mundo do futebol resolveu tampar o nariz e absorver aquela história, que tinha muita gente poderosa envolvida e um clube irrelevante como vítima.

Agora, morreu também Da Lupa. E nunca saberemos o que aconteceu. Sobrou apenas o fantasma, que viverá para sempre no Canindé.

(Nota do colunista 19h35: Vejo que muitos torcedores do Fluminense estão indignados, pois defendem a narrativa de que o Flamengo foi o grande beneficiado pela punição à Portuguesa. Minha ideia original não é debater o caso a fundo, apenas identificar a ironia do destino que representou a morte de Da Lupa no mesmo dia de um título do Fluminense. O Campeonato Brasileiro de 2013 acabou com o Fluminense rebaixado no campo. As escalações irregulares não afetaram resultado algum, não alteraram em nada o andamento do campeonato. Ambos os clubes poderiam ter sido punidos com a perda de pontos, por exemplo, no campeonato seguinte, para que não fosse alterada a justiça do campo, do que efetivamente aconteceu. É preciso lembrar que Flamengo e Portuguesa entraram em campo na última rodada já matematicamente salvos. Será que a guerra de narrativas não foi criada justamente para criar confusão ao longo dos anos? É crível acreditar que o Flamengo subornou a Portuguesa da noite para o dia, ainda dando a sorte de haver um jogador suspenso que, uau, que coincidência, a Portuguesa levou à concentração no dia anterior? Não, não é crível. Em nenhum momento do texto eu falo que o Fluminense é o responsável pelo que fez a Portuguesa, apenas que foi o grande beneficiado prático do tapetão. Um tapetão incrivelmente rápido. O procurador do STJD, Paulo Schmidt, já sabia na terça-feira da escalação irregular (geralmente essas coisas demoram dias para serem identificadas e são levadas ao STJD pelos clubes interessados, não por iniciativa própria do Tribunal) e falava com sangue nos olhos sobre o tema. Ele já estava devidamente preparado para o que viria. E acredito que seja uma mancha na história do Fluminense ter participado daquele julgamento - o advogado da vez passou a ser santificado e, hoje, é o presidente do clube. Alguns dirão que é um recibo, eu digo que é uma vergonha. O resultado do campo foi alterado. E os erros cometidos naquele fim de semana não foram erros. Não era só o Fluminense que poderia ter sido beneficiado - sequer seria, se não tivesse feito um gol no último minuto do jogo dele. Para quem interessaria dois clubes do Rio de Janeiro rebaixados à Série B? Aquele teatro foi ensaiado por muitas semanas até ser encenado no Tribunal. Se eu soubesse o diretor da obra, contaria aqui. Carregaremos para sempre as narrativas de clubes cariocas se acusando mutuamente - porque possivelmente achem mesmo que a culpa é do outro. De quem era a grande mão por trás daquilo? Nunca saberemos).

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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