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Julio Gomes

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que a Liga de Clubes não tem chance de dar certo no Brasil

Rodolfo Landim e Guilherme Bellintani, presidentes de Flamengo e Bahia, falam sobre criação da Liga de clubes - Igor Siqueira/UOL Esporte
Rodolfo Landim e Guilherme Bellintani, presidentes de Flamengo e Bahia, falam sobre criação da Liga de clubes Imagem: Igor Siqueira/UOL Esporte

04/05/2022 04h00

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Um grande amigo espanhol, contemporâneo, me respondeu quando lhe perguntei sobre a criação da Liga de clubes por lá: "Não lembro quando foi. La Liga é La Liga desde sempre".

De fato, precisamos voltar a 1984 para encontrar o momento em que os clubes espanhóis tomam para si o controle da organização do campeonato da primeira divisão - ainda que a Real Federação Espanhola tenha se mantido envolvida em alguns aspectos. Pouco a pouco, a relação de forças foi mudando, com mais poder para os clubes, menos para os sanguessugas. E, assim, os clubes espanhóis chegaram à era dos grandes contratos de TV.

Foi uma emissora de TV, a ITV, que deu ignição ao projeto da Premier League na Inglaterra, em 1990. O canal queria dar mais dinheiro e passar mais jogos do "big five", formado por Manchester United, Liverpool, Everton, Arsenal e Tottenham. Era, no entanto, o nascimento da era da TV à cabo ou satélite, e um esperto e bem conectado empresário australiano, Rupert Murdoch, o dono da Sky, ofereceu mais e para mais gente.

Em 1992, entrava em jogo a Premier League, que se transformaria na liga doméstica mais rentável do mundo. Foi a mídia, portanto, que resgatou o futebol inglês das trevas. Uma ideia elitista se transformou em uma ideia mais abrangente e melhor para mais gente.

Vamos tentar voltar no tempo e lembrar o que aconteceu no Brasil entre a criação das ligas na Espanha e na Inglaterra? Fácil, não? Houve a criação da Liga brasileiras, oras bolas. Só que não. O ano era 1987 e aquele era o momento chave para que o futebol brasileiro sofresse uma revolução administrativa. O que aconteceu na prática? A criação de um campeonato formado por um grupelho de clubes de elite, os mais populares, atropelando critérios esportivos.

Compreender o que foi 1987 é compreender por que o futebol brasileiro é o que é. Aliás, compreender a linha do tempo do futebol brasileiro, os mandos e desmandos, as negociatas, os jogos de poder, é compreender o próprio Brasil e nossa sociedade. O que vimos, afinal, de 1987 até 2022, durante estes 35 anos?

Vimos traições, vimos uma Confederação esportiva ser dominada por gângsters, que fizeram muito, mas muito dinheiro ao longo de décadas e que logicamente tiveram parceiros importantes para estar no poder por tanto tempo. Parceiros dentro do Congresso Nacional, colocados lá por eles mesmos, e parceiros nos principais clubes do país, além, claro, das Federações estaduais.

É correto dizer que os clubes nunca tiveram o poder no Brasil e ficaram reféns da CBF? É claro que não. Os clubes foram parte disso. E o grupo Globo de comunicação também - com pessoas, em sua maioria, que já não estão mais lá, diga-se. Podem ter certeza que muitas destas pessoas, estando ou não na CBF ou na Globo, ainda seguem apitando e influenciando os processos.

O vácuo de poder de ambas as organizações é o "fato novo" que permite aos clubes fazerem o que deveriam ter feito três ou quatro décadas atrás. Criar a tal Liga. Qual a diferença? Que o terreno perdido para os europeus nunca mais poderá ser recuperado. O Brasil tinha a condição de ter se transformado no centro do futebol mundial e isso não vai mais acontecer, seremos sempre produtores de matéria-prima, mas periferia mercadológica.

Qual a semelhança? A mentalidade é a mesma. Individualista, tacanha, bélica. Já houve vários momentos da história democrática em que a sociedade brasileira foi mais coesa, as lideranças, mais fortes, as hierarquias, respeitadas, e poderia haver naqueles cenários uma chance maior de criação de uma Liga ampla. Neste momento, estamos fragmentados, divididos e cada vez mais egoístas.

Podemos dizer tranquilamente que havia mais de 10 clubes brasileiros em situação parecida em um passado não tão distante. Hoje, não. Quem tem mais, quer mais e não está disposto a dividir. Ainda mais se for para dividir com um rival histórico. Quem tem menos, não tem poder de barganha. São necessários altruísmo e empatia para que seja criado um sistema equilibrado, um produto bom para todo mundo. Não estamos habituados nem a uma coisa nem outra. É da nossa sociedade, não só do nosso futebol.

Enquanto esses caras debatem percentuais de cotas e o que cada clube vai ganhar, quem fala sobre Séries C, D, reestruturação geral, futebol de base, os vários clubes populares e representativos que ficaram pelo caminho?

Nas leituras das várias reportagens ontem sobre as reuniões para a formação da nova Liga, pipocou um sobrenome: Zveiter.

Percebam. Vários dos atores são os mesmos. Por que achar que a turma que fez o futebol brasileiro afundar e ser a porcaria que é vai ser capaz de criar algo melhor, só porque a CBF não estará nessa como protagonista? Me perdoem, mas não dou o benefício da dúvida. De onde nunca veio nada, possivelmente não virá nada mesmo.

Talvez a Liga saia do papel. Talvez um punhado de clubes importantes do Brasil ganhem mais dinheiro do que ganham hoje, com menos intermediários. Talvez o produto melhore. Mas o futebol brasileiro é - ou deveria ser - muito mais do que uma Liga. E os caras envolvidos são a mesma turminha de sempre.

No primeiro atrito, cada um puxará para o seu lado e logo haverá gente disposta a botar tudo a perder, em nome do interesse individual - e não coletivo. E, se vocês ainda estiverem muito otimistas em relação a essa nova era, fica apenas uma sugestão. Na hora da reunião, perguntem lá sobre quem vai ficar com a Taça das Bolinhas.