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'Vida digna': Instituição dá crédito a 'excluídos' de grandes bancos no Sul

A vendedora Carmen Lúcia Xavier no banheiro de sua casa. Tanto o novo cômodo como a moradia foram financiados pelo Banco da Família. - João Rangel
A vendedora Carmen Lúcia Xavier no banheiro de sua casa. Tanto o novo cômodo como a moradia foram financiados pelo Banco da Família. Imagem: João Rangel

Pâmela Carbonari

Colaboração para Ecoa, de Florianópolis (SC)

02/03/2023 06h00

Com acesso negado a grandes bancos, muitos brasileiros, em sua maioria trabalhadores informais, têm recorrido a instituições de microcrédito para financiar custos essenciais, como moradia e saneamento básico.

Com sede em Lages (SC) e outras 25 unidades espalhadas pela região Sul, o Banco da Família ganhou destaque nacional ao oferecer 13 linhas de crédito focadas em inclusão, desenvolvimento e transformação social, contribuindo para mudar a vida de trabalhadoras como Karen Cristina da Rosa Ramos e Carmen Lúcia Xavier.

Karen trabalha com materiais recicláveis, é mãe de quatro filhos e recorreu a um empréstimo para construir a casa própria enquanto Davi, seu caçula, fazia um tratamento para leucemia. Já Carmen Lúcia vende pães, salgados e roupas, vive com o marido aposentado, o irmão de 45 anos que precisa de cuidados em tempo integral devido a uma deficiência e o neto, que é uma criança autista. Ambas são profissionais autônomas e moradoras de Lages, em Santa Catarina, a 220 km de Florianópolis.

Depois de terem seus pedidos de empréstimos negados por não atenderem às exigências de bancos tradicionais, elas recorreram ao Banco da Família. "Se hoje nós temos uma casa, um banheiro, uma vida mais digna e confortável foi graças a eles", diz Karen, que, além de financiar uma casa própria, conseguiu um segundo empréstimo para a construção de um banheiro, deixando para trás os banhos de mangueira a que tinha de recorrer junto com seus filhos. No inverno lageano, não é raro os termômetros atingirem temperaturas negativas, com sensação térmica de até -10°C.

Já Carmen conseguiu reformar o banheiro da casa, tornando o cômodo acessível para o irmão, e construiu outro mais próximo para ela — com problemas pulmonares, ela tinha dificuldades de compartilhar o espaço antigo.

O Banco da Família é uma instituição de microfinanças que inicialmente amparava empreendedores formais e informais de Lages. Hoje, está presente em mais de 210 municípios do Sul do Brasil, com empréstimos que giram em torno de R$ 5.308,77 e juros que oscilam de 1,98% a 4,29% ao mês.

Um levantamento feito pelo banco mostrou que 21% das transferências de crédito de 2022 foram realizadas para contas de terceiros.

85% dos nossos clientes são trabalhadores informais, com dificuldades para acessar o sistema bancário tradicional por não conseguirem comprovar renda. Eles também são desbancarizados. Nós respeitamos e damos condições para que recebam o crédito mesmo assim. Isabel Antunes Baggio, presidente do Banco da Família e da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred).

A executiva Isabel Antunes Baggio - Guilherme Antunes - Guilherme Antunes
A executiva Isabel Antunes Baggio, presidente do Banco da Família e da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred).
Imagem: Guilherme Antunes

Segundo levantamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos, no fim de 2022, o Brasil registrava 50% de trabalhadores informais, se considerados nessa conta os autônomos e empregados no setor público sem carteira assinada. Nesse sentido, outras 35 instituições com perfil semelhante ao Banco da Família estão em funcionamento no país, reguladas por leis que definem tarifas e condições específicas de cobrança voltadas para a erradicação da pobreza e da exclusão social.

Isabel conta que, desde a criação do banco, eles buscam fazer parcerias internacionais, e destaca o trabalho com a investidora de impacto social holandesa Oikocredit. "Estamos sempre em conjunto com instituições internacionais de vanguarda, porque ter essa visão global faz muita diferença. Olhando para fora, conseguimos resolver os problemas de quem está perto.", afirma.

Em 2021, o Banco da Família obteve a terceira colocação entre 204 instituições globais por seus bons resultados financeiros e sociais em uma avaliação feita pela MicroRate, companhia norte-americana especializada em rating de microfinanceiras.

Da saúde à educação, os impactos do saneamento precário

Atualmente, mais de 5 milhões de brasileiros não possuem banheiro em casa, e a falta de saneamento adequado prejudica mais de 130 milhões, de acordo com o Instituto Trata Brasil. Verminoses, infecções bacterianas, doença de Chagas, arboviroses (como dengue, chikungunya e zika), hepatite — a lista de doenças relacionadas à privação desse direito básico é imensa.

O IBGE estima que a falta de saneamento mate 11,2 mil pessoas por ano no Brasil, enquanto o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) calcula que 65% das internações infantis sejam causadas por falta de tratamento de água e esgoto. Em contraponto, no longo prazo, o investimento no setor pode gerar grandes benefícios sociais e econômicos. Segundo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), cada real investido em saneamento equivale a R$ 4 economizados em saúde pública.

Além dos impactos à integridade física, crianças que vivem em regiões onde essa infraestrutura é precária apresentam um rendimento escolar 18% menor do que a média, o que leva a um aumento nos índices de evasão escolar. Entre as mulheres, os problemas decorrentes da falta de estrutura de saneamento básico agravam a pobreza menstrual, o que também provoca abandono da escola, além do risco de violência sexual.

Não à toa, garantir acesso universal e equitativo de água potável e saneamento faz parte dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Entre as metas da ONU também está o compromisso para que todos tenham acesso a serviços financeiros, incluindo microfinanças.

Dignidade e amparo no luto

No Banco da Família, a história de Karen não é um caso isolado. De olho nas graves consequências da falta de saneamento, a instituição passou a oferecer empréstimos de R$ 500 a R$ 10 mil para instalação e melhorias nas condições de água e esgoto. O desenvolvimento dessa linha de crédito foi feito em parceria com a ONG Water.org, que tem o ator Matt Damon como um de seus fundadores — desde 2017, quando foi criado, o programa recebeu US$ 324 mil, o equivalente a R$ 1,6 milhão.

A universalização do saneamento e do acesso à água potável estão entre os principais desafios dessa década no Brasil. - João Rangel - João Rangel
A universalização do saneamento e do acesso à água potável estão entre os principais desafios dessa década no Brasil.
Imagem: João Rangel

Ao longo desses cinco anos, o valor médio do crédito para captação de água potável, encanamento, tratamento de esgoto, drenagem de água da chuva e construção e reforma de banheiros ficou em R$ 3.621,00, podendo ser devolvido em até 36 meses com baixas taxas de juros. Desde então, mais de 33 mil pessoas foram contempladas. No ano passado, o banco liberou R$ 9,71 milhões para a área, um aumento de 16,5% em comparação ao valor destinado em 2021.

Treinados pelo Instituto Trata Brasil, uma referência no tema da universalização do saneamento, os agentes do Banco da Família têm a missão de identificar as necessidades das famílias visitadas e alertá-las sobre a importância do saneamento. Desde 2021, também acontecem ações de conscientização sobre saneamento e saúde em escolas da região de Lages — até o momento, mais de 5 mil crianças participaram das palestras.

Em paralelo, o banco já impactou mais de 70 mil pessoas através de incentivos gratuitos à educação financeira para clientes e não clientes.

A recicladora Karen Cristina da Rosa Ramos - Fom Conradi - Fom Conradi
"Se hoje nós temos uma casa, um banheiro, uma vida mais digna e confortável, foi graças a esse financiamento"
Imagem: Fom Conradi

Davi, o filho mais novo de Karen, não viveu o suficiente para ver a casa e o banheiro que a família construiu com o empréstimo. Sua mãe conta que o apoio dos profissionais do Banco da Família foi fundamental para ajudá-la a lidar com o luto.

"Quando o Davi faleceu foi a pior coisa do mundo, mas todos foram muito humanos, ampararam meu filho até o último momento. E ainda entrei no Programa Despertar, que me ajudou a me levantar de uma tristeza profunda, a pensar em novos projetos e sonhos".