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Você acredita que bichos devem ter direitos? Isso é o abolicionismo animal

Abolicionismo animal propõe a extinção de todas as formas de reprodução forçada - iStock
Abolicionismo animal propõe a extinção de todas as formas de reprodução forçada Imagem: iStock

Antoniele Luciano

Colaboração para Ecoa, de Curitiba (PR)

12/03/2022 06h06

Pela primeira vez, o bem-estar dos animais será uma pauta política global. Esse novo status concedido à causa animal se deve a uma resolução aprovada no início de março pela Organização das Nações Unidas (ONU). Com a medida, os países signatários se comprometem a proteger os animais e seus habitats. A ideia é que, a partir desse documento, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) desenvolva um estudo capaz de apontar a ligação entre o bem-estar animal, meio ambiente e desenvolvimento sustentável.

A preocupação com os animais, no entanto, já é pauta das discussões abolicionistas animais desde os anos 1980. Para os ativistas desse movimento, é importante ir além de medidas de bem-estar que tentem proteger os animais de maus tratos durante seu confinamento ou evitar sofrimento no abate. Os animais são compreendidos como seres detentores de direitos que precisam ser respeitados.

A partir desse entendimento, como é, na prática, a perspectiva do abolicionismo animal? Isso estaria diretamente ligado ao veganismo? Ecoa ouviu especialistas para responder essas e outras questões sobre o assunto.

O que é abolicionismo animal?

Professora aposentada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a filósofa Sônia T. Felipe introduziu no Brasil as teorias éticas que fundamentam a defesa dos direitos animais ainda na década de 1990. Ela explica que o abolicionismo animal consiste em um movimento de defesa dos animais que propõe a extinção de todas as formas de reprodução forçada, seja para criação de rebanhos voltados à alimentação humana, seja para a comercialização desses animais para experimentos, companhia, guarda, estima, rinha, competições e espetáculos.

"Ao mesmo tempo, defendemos que todas essas práticas, da alimentação à diversão, passando pela experimentação e exploração de qualquer tipo, sejam abolidas em todos os níveis, do institucional ao pessoal", reforça ela, ao pontuar que as discussões envolvendo o assunto tiveram início em 1987, com a proposta abolicionista do filósofo estadunidense Tom Regan, no livro "A batalha pelos direitos animais". Duas décadas depois, o jurista Gary Francione, também dos Estados Unidos, adotou a concepção de Regan e a disseminou em seus livros.

Por que os animais são possuidores de direitos?

O direito dos animais, sustenta Sônia, vem de seu nascimento em liberdade: na natureza, nenhum deles nasce cerceado. Ocorre que o manejo realizado pelos humanos atrofia as liberdades relacionadas à nutrição apropriada e escolhida por eles, à procriação nos parâmetros naturais da própria espécie, ao descanso e à busca por proteção contra ameaças ambientais e vindas de outros animais, quatro importantes formas de liberdade animal. "Essas quatro liberdades podem ser desdobradas em múltiplas condições. Nenhuma delas é concedida a qualquer animal criado, usado, escravizado e morto para quaisquer interesses humanos", observa a pesquisadora.

A compreensão dos animais como sujeitos de direitos, completa o professor Heron Santana Gordilho, da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), também está ligada ao fato de eles serem considerados seres sensíveis. "Boa parte dos animais são considerados seres sencientes, que não só sentem dor, mas têm consciência dessa dor, tanto que sofrem por antecipação. Alguns têm também consciência de si, como é o caso dos mamíferos", assinala o pesquisador, que atua ainda como promotor no Ministério Público da Bahia.

Em 2005, Gordilho foi autor de um pedido de habeas corpus na Justiça para que uma chimpanzé fosse transferida do zoológico de Salvador para Sorocaba, no interior de São Paulo. Foi a primeira vez no mundo que um animal foi reconhecido como um sujeito de direitos, o que abriu precedentes para decisões em outros países, como Argentina e Estados Unidos.

O abolicionismo está diretamente ligado ao veganismo?

Sim. E isso acontece porque defender os animais não é o mesmo que defender somente duas ou três espécies de animais, como gatos, cachorros e cavalos. O abolicionismo animal, sustenta a professora, é uma defesa mais ampla e sem discriminação de espécie. Respeitar essas existências começa por abolir do próprio prato, guarda-roupa, diversão e produtos de higiene e limpeza todos os itens de origem animal.

"Não se restringindo apenas ao conteúdo do prato, o que o reduziria ao comidismo, o abolicionismo animalista tem um espectro que recupera o verdadeiro sentido do termo díaita, em grego, que refere o modo como uma pessoa vive em todos os âmbitos de sua existência", acrescenta Sônia. "Não menos importante, envolve abolir da linguagem todas as expressões depreciativas animalizadas", completa.

Apesar de destacar que o veganismo é o caminho natural para o fim da exploração animal, Gordilho reconhece que essa é uma mudança de comportamento que ainda levará tempo para se estabelecer no Brasil. "Não é de uma hora para a outra. A tendência é que as pessoas reduzam o consumo de carne cada vez mais. É um processo de encontrar novas formas de alimentação para substituição", diz.

O pesquisador lembra que, embora essa decisão impacte o país enquanto maior produtor de carne, o veganismo precisa ser discutido também do ponto de vista climático. Hoje, salienta ele, o Brasil tem se concentrado em produzir algo que destrói o meio ambiente e gera mais gases do efeito estufa do que a indústria do transporte.

Quais os maiores desafios para o movimento abolicionista animal e qual o caminho para superá-los?

Primeiro, é preciso enfrentar a crença de que uma dieta com derivados de animais é imprescindível, analisa Sônia Felipe. Essa ideia, conforme a professora, está diretamente ligada a atividades econômicas que lucram com a morte de animais.

Além de desmontar esse modelo alimentar, ela cita a necessidade de mostrar que a dieta vegana não é uma dieta elitista. Por isso, a solução para esses desafios passa pela educação vegana. "É preciso que os veganos sigam em sua luta, educando quem nunca ouviu falar do assunto, ajudando a mudar as crenças que ainda cultivamos de que os outros animais são seres inferiores no planeta Terra, e de que a vida deles está aí para derrotarmos. As crenças ditas 'humanistas', que põem os interesses dos homens e seus propósitos acima de tudo, devem ser superadas", sustenta.

Para o professor Heron Gordilho, o fim da exploração animal depende do acesso à educação ambiental. Assim, acredita ele, será possível haver um aumento de consciência ambiental no país capaz de evitar ações como a do Congresso brasileiro, que reconheceu a vaquejada como patrimônio histórico em 2016. "O Brasil ainda é um dos últimos países a permitir isso. É um desserviço promover a dessensibilização humana. Quem não tem compaixão ao ver um animal sofrendo não vai ter por seres humanos", enfatiza.