Topo

Bichos na Justiça: cachorro pode processar dono por maus tratos? Entenda

Getty Images
Imagem: Getty Images

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

14/12/2021 06h00

Graças ao trabalho de uma ONG, dois cachorros conseguiram um feito curioso: a dupla ganhou, em setembro, o direito de processar os próprios ex-donos sob alegação de maus tratos no Paraná. De acordo com decisão do Tribunal de Justiça do estado, Rambo e Spike podem ser considerados como autores do processo. Ou seja, equivalentes a um ser humano que processa outro ser humano.

O caso aconteceu em setembro e pode influenciar outros tribunais brasileiros a tomar decisões semelhantes. Segundo especialistas, o episódio também abre um debate propositivo para reconhecer e respeitar animais como seres com consciência e direitos.

Como os cães foram parar na Justiça?

Tudo começou em janeiro de 2020. Na época, o pointer inglês Rambo e o golden retriever Spike teriam ficado sozinhos por 29 dias nos fundos de uma casa no município de Cascavel. Os cães eram alimentados por vizinhos, que acionaram a ONG Sou Amigo para resgatá-los. Depois, a Polícia Militar fez um boletim de ocorrência por maus tratos.

Após o resgate, a advogada da ONG, Evelyne Paludo, entrou com um processo contra os ex-tutores dos animais na esfera civil. Ou seja, ela buscou o mesmo setor da Justiça usado para mediar relacionamentos entre cidadãos e pediu o direito dos cães serem considerados como parte interessada no processo.

Evelyne afirmou que a dupla de cães ficou sozinha nas festas de ano novo e tem medo de trovões e fogos de artifício. Segundo ela, Spike foi resgatado com ferimentos infeccionados.

Em setembro de 2021, o tribunal aceitou o argumento, o que abriu caminho para que Rambo e Spike pudessem participar de uma nova audiência para defender o recebimento de indenização por possíveis abalos psicológicos — o chamado dano moral.

Em nota para a imprensa, os ex-tutores Elizabeth Meriva e Pedro Rafael Echer defendem que "não havia somente Spike e Rambo no imóvel, mas somente estes foram levados" e que "os fatos não foram totalmente expostos e nem a forma como tudo ocorreu".

Qual a importância da inclusão dos cães no processo?

Por décadas, defensores dos animais batalham para que bichos sejam reconhecidos como seres sencientes na Justiça e em leis. O termo "senciente" significa que os animais sentem dor, medo, alegria e são conscientes sobre a própria vida. Ou seja, indivíduos com direitos a serem respeitados por toda a sociedade.

Atualmente, a Lei Sansão aumentou a pena contra quem maltrata gatos e cachorros, mas protetores animais querem ir além. Eles querem reconhecer também os abalos psicológicos e patrimoniais contra animais.

"O objetivo é justamente demonstrar para agressores que a violência contra animais não é aceita pela nossa legislação e ampliar o espectro [das leis] de proteção", diz Evelyne. "Temos que mostrar que o direito é deles", acrescenta.

O que essa decisão pode significar para outros animais?

Não existe lei para tudo. Muitas situações vão parar na Justiça e precisam ser discutidas e debatidas em detalhes pela primeira vez. Assim, uma decisão judicial inédita pode abrir o chamado precedente.

O processo de Spike e Rambo abriu um precedente novo. De agora em diante, um animal não humano pode constar como autor em defesa dos próprios direitos na Justiça, segundo o advogado ambientalista Werner Grau. Na prática, o processo é aberto por meio de um tutor ou instituição com a guarda do bichinho

"A decisão no Paraná é uma mudança radical", afirma o especialista. "Até pouco tempo atrás, era comum que bichos fossem tratados como coisa. Agora se entende que é possível, por meio de um tutor, defender uma indenização por dano moral e patrimonial para cobrir o custo para cuidar da saúde dos animais".

Na opinião do advogado à frente do aplicativo de resgate animal Pet-Ponto, o precedente permite que todos os bichos, não só cães, tenham direito a se defenderem judicialmente. "Cada caso, claro, seria debatido e decidido de acordo com a interpretação de cada juiz", acrescenta.

Isso já aconteceu antes?

Em maio deste ano, um cão da raça Basset Hound chamado Chaplin entrou com uma ação por danos morais contra a administração de um prédio em João Pessoa que queria proibi-lo de circular. Em março, outro advogado no Ceará apresentou uma ação com a "assinatura" de um cão: uma patinha no papel. O caso de Spike e Rambo abre o precedente para que a Justiça oficialmente os reconheça como capazes de defender os próprios direitos.