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Vender alimentos fora da validade é uma boa ideia contra o desperdício?

zoranm/iStock
Imagem: zoranm/iStock

Carmen Lúcia

Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro

09/12/2021 06h00

Uma forma eficaz de evitar o desperdício de comida ou uma medida que coloca em risco a saúde do consumidor? Esse é um dos questionamentos que surgiram nas últimas semanas, após a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) propor uma nova abordagem em relação ao conceito de data de validade para alimentos não perecíveis, como macarrão, leite e conservas.

De acordo com a instituição, a sugestão é que a data permaneça na embalagem, mas indicando que o consumo deve ocorrer preferencialmente — e não obrigatoriamente — até aquele dia. Isso porque, segundo a Abia, o fim do prazo não significa necessariamente que o alimento não possa mais ser consumido.

"No Brasil, se passou da data limite, o alimento não pode mais ser comercializado nem consumido, o que pode fazer com que muita comida, ainda em condições adequadas e seguras para o consumo, vá para o lixo", disse ao UOL Economia o presidente executivo da associação, João Dornellas. A ideia é que, com a nova data, os produtos ainda possam ser vendidos, mas por um preço menor.

Ainda segundo a Abia, depois do prazo estabelecido, caberia ao consumidor avaliar características do alimento, como cheiro e aspecto, antes de consumi-lo. As comidas não perecíveis são aquelas que demoram mais para estragar, pois têm pouca água na composição ou passaram por processos de esterilização (como o leite UHT), o que dificulta a proliferação de microrganismos. Produtos perecíveis, como carnes, não entrariam nessa nova regra.

Mas será que essa é uma alternativa segura para combater o desperdício de alimentos? Ecoa conversou com especialistas para ajudar a entender melhor a questão.

SIM

Produtos são tratados como lixo mesmo estando bons para consumo

Luciana Chinaglia Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos — associação que recolhe alimentos que já perderam valor de prateleira no comércio e indústria, mas ainda estão aptos para consumo, e os distribui onde são mais necessários — acredita que a mudança pode sim ajudar a diminuir o desperdício.

"Acho que permitir que os produtos ainda sejam vendidos e gerem lucro é um fator que também conta para a proposta, mas, antes de tudo, é sobre não jogar fora alimentos que ainda estão dentro de uma qualidade nutricional. E eles são tratados como lixo, quando não são. Poucas indústrias ainda doam os seus alimentos como deveriam, quando passam do prazo de validade. A maioria apenas descarta. Então, tudo isso faz parte de uma tomada de consciência muito necessária para a época que a gente vive", opina. Segundo estudos da ONG, 117 milhões de pessoas estão vivendo em estado de insegurança alimentar no Brasil em 2021.

Produtos mais acessíveis para quem precisa

Trabalhando para mudar o fato de que quase um terço da população não tem acesso a comida em quantidade e qualidade adequadas à vida saudável em um país que lidera o ranking mundial de produção e exportação de diversos alimentos básicos, Luciana aposta na nova medida para tornar as refeições algo acessível a todos os públicos.

"Também se pode considerar que as pessoas com renda menor, em tese, também poderão se beneficiar por comprar produtos mais baratos. Para além disso, é muito importante indústrias e comércio doarem a maior quantidade possível de alimentos. Algo doado de uma data próxima ao 'best before' ('de preferência antes de'), é muito digno. Não vejo como apenas uma forma de 'dar comida vencida aos pobres.'"

Mas Luciana alerta para a necessidade de certos cuidados: "É preciso ficar claro para quais produtos essa medida se aplica e definir o prazo possível de comercialização passada a data 'best before'. Mas o malefício será se esperarem até não ser mais possível doar em tempo hábil para consumo e a comida acabar indo parar no lixo de qualquer maneira."

NÃO

Consumidor não está preparado para avaliar segurança dos alimentos

Uma das preocupações levantadas por especialistas é sobre a qualidade dos alimentos. Para a nutricionista Camila da Silva Pereira, nada garante que o cidadão leigo seja capaz de diferenciar um alimento seguro para ser consumido de outro que não é. "Se um alimento estiver muito danificado, até podem conseguir perceber. Agora, a questão é que microrganismos não produzem efeitos sempre aparentes, e podem ser nocivos mesmo que o alimento não apresente grande alteração. Pequenos pontos de mofos e pequenas alterações passam facilmente despercebidas e podem gerar danos à saúde. Essa responsabilidade nunca deve ser de quem consome e sim de quem vende e/ou prepara o alimento".

A engenheira de alimentos Lorena Coimbra, diretora e fundadora da Foodtech Consultoria e especialista em segurança de alimentos e auditoria interna na certificação FSSC 2200, complementa: "A data de validade de um alimento indica ao consumidor o prazo para consumo seguro, ou seja, em que o produto não vai trazer nenhum prejuízo à saúde — e, para além disso, também traz o prazo no qual os padrões de qualidade se manterão. Isso é de extrema importância para a segurança de alimentos e experiência de consumo."

Cada produto tem suas particularidades

Para a profissional, é importante ficar atento aos riscos que a medida proposta pode acarretar. "Existem muitos riscos que devem ser avaliados para cada produto. Os alimentos não perecíveis são mais estáveis do que os alimentos perecíveis, pois possuem baixa atividade de água, por exemplo. Mas cada um tem sua particularidade. É necessário entender os fatores intrínsecos e extrínsecos de cada um, como por exemplo a disponibilidade de nutrientes, carga microbiana, manuseio, atividade de água, entre outros aspectos. Então, hoje, o risco é alto, pois o consumidor não consegue avaliar estes aspectos, que variam para cada produto e cada fornecedor".