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Passarinho ameaçado reaparece e "salva" terras no Pampa gaúcho

Veste-Amarela, ave se tornou símbolo de fazendeiros sustentáveis do Pampa, bioma mais jovem do Brasil - Divulgação
Veste-Amarela, ave se tornou símbolo de fazendeiros sustentáveis do Pampa, bioma mais jovem do Brasil Imagem: Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

19/10/2021 06h00

Um passarinho amarelo e preto assovia pelos campos que parecem infinitos do Pampa gaúcho. A ave se chama Veste-Amarela. Como se deduz pelo nome, as penas lembram um casaco escuro colocado em cima de um corpo amarelo. Ao vê-lo voando pela propriedade ou acomodado em ninhos, o produtor nesta região se sente orgulhoso em recepcioná-lo. Não à toa, a ave virou um símbolo de conservação da natureza no Pampa.

Desde 2007, um grupo de fazendeiros se une para conservar a vegetação original e os animais da região, como o Veste-Amarela. O desafio é complexo. O Pampa é o único bioma brasileiro presente em apenas um estado, o Rio Grande do Sul, onde ocupa 63% do território. É um dos menores no país, com 176,5 mil quilômetros quadrados, atrás apenas do Pantanal.

Voo de Veste-Amarela em Pampa gaúcho - Adriano Becker/Divulgação - Adriano Becker/Divulgação
Voo de Veste-Amarela em Pampa gaúcho
Imagem: Adriano Becker/Divulgação

Embora abrigue uma cultura de séculos dos gaúchos, a paisagem original passa por mudanças constantes. Para mantê-la como é, ambientalistas e produtores rurais tiveram uma ideia: a criação da Alianza Del Pastizal, que hoje conserva 150 mil hectares de vegetação nativa do Pampa gaúcho. Toda a área conservada está em propriedades particulares de 250 produtores.

O grupo não é um clube. Para participar, é preciso apenas que a fazenda receba uma inspeção técnica para garantir no mínimo 50% de campo nativo no terreno. É aí que entram os passarinhos.

Passarinhos pelo campo

As aves se tornaram um reflexo da conservação para os produtores. E tem motivo. A Alianza foi formada a partir da SAVE Internacional, uma organização criada para a preservação de pássaros pelo mundo e com representação no Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai.

O plano da instituição nos Pampas era mapear pássaros, mas produtores e ambientalistas se uniram para metas ainda mais ambiciosas. Além das aves, a aliança assumiu o objetivo de salvar um número maior de espécies, algumas ameaçadas de extinção, e conservar a vegetação nativa. Pouco a pouco, a ideia foi mobilizando mais gente e gerou um ciclo sustentável de geração de dinheiro.

O Veste-Amarela foi escolhido como símbolo da Alianza. A espécie, juntamente com as mais de 470 presentes nos campos gaúchos, é usada como um medidor de qualidade ambiental. Quanto mais voam e se aninham pelo terreno, mais saudável e original é o ambiente.

"O Veste-Amarela é uma espécie típica dos campos do Sul e ameaçada de extinção", explica Pedro F. Develey, biólogo e diretor executivo da SAVE Brasil e um dos idealizadores da aliança.

Segundo ele, as aves ajudaram a popularizar a conservação e a sustentabilidade do projeto. Os produtores passaram a receber instruções para identificá-las e a entender importância da conservação para mantê-las voando por ali.

Atualmente, o diretor afirma que 266 espécies foram encontradas em 30% das propriedades que receberam um levantamento. Entre elas, 13 são ameaçadas de extinção.

Incentivo vai no bolso

Os produtores da Alianza costumam trabalhar no setor da agropecuária há muitas gerações. Muitos evocam a figura mais conhecida do gaúcho montado a cavalo, rodeado por bois, vestido com bombachas e chapéu. Apesar disso, novos negócios estão lentamente alterando o retrato.

Conservação de campo nativo do bioma Pampa foi medida para construir um negócio sustentável no Rio Grande do Sul - Divulgação - Divulgação
Conservação de campo nativo do bioma Pampa foi medida para construir um negócio sustentável no Rio Grande do Sul
Imagem: Divulgação

Segundo Pedro, a soja e as plantações de eucalipto se tornaram negócios atraentes na região sul. Por isso, a Alianza também precisou pensar no bolso. Todos os inscritos recebem 2% de bonificação além do valor pago pelos frigoríficos para o gado criado em campos nativos.

Depois, a carne recebe um selo de qualidade estampado com o Veste-Amarela. As peças, que devem chegar às gondolas de supermercados em São Paulo e Rio Grande do Sul em breve, visam um consumidor mais preocupado em saber o que coloca no prato. Há também planos para a venda de vinho e mel com a imagem do passarinho no futuro.

Mas tem bicho no pampa?

O Pampa é o "irmão" mais novo entre os cinco biomas brasileiros e só foi reconhecido oficialmente em 2004. Devido à pouca idade e pela presença em apenas um estado no país, não tem a mesma fama da Caatinga, Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado ou Pantanal.

Não é incomum que seja chamado de monótono, talvez solitário, e tachado como um lugar com menos espécies animais em relação aos "irmãos" mais experientes e conhecidos. Mas nada disso é verdade. Há muita vida nesses campos, segundo quem o conhece a partir da própria vida ou por meio da ciência.

Há mais de 3 mil espécies de plantas e centenas de espécies animais, incluindo algumas endêmicas como o beija-flor-de-barba-azul e o roedor tuco-tuco, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. A natureza vai longe. Na América do Sul, o bioma é compartilhado com Uruguai, Argentina e com resquícios no Paraguai, em um total de 750 mil quilômetros quadrados. A paisagem tem serras, planícies, morros e coxilhas, espécies de "lombadas" no relevo.

A fazendeira Graça Tirelli, uma das poucas mulheres à frente de uma fazenda no Pampa gaúcho, mantém a vegetação nativa do local como integrante da Alianza. Ela é uma amostra da mudança que tem acontecido nessas terras.

Além de agropecuarista, Graça é bióloga e artista. Nos últimos meses, a fazendeira ensinou sobre bem-estar animal para os funcionários. Segundo ela, a rispidez desrespeita a vida já curta do gado, e o cuidado melhora a qualidade da produção e dá mais leveza para a vida do campo. É importante dizer que há um constante e sereno cheiro de terra molhada nos campos.

Fazenda de Graça Tirelli, em Alegrete, onde ela diz ser possível ouvir a quilômetros de distância - Reprodução/Arquivo pessoal - Reprodução/Arquivo pessoal
Fazenda de Graça Tirelli, em Alegrete, onde ela diz ser possível ouvir uma chuva que cai distantemente
Imagem: Reprodução/Arquivo pessoal

Sempre que monta em seu cavalo, ela leva uma câmera fotográfica junto. Os campos se estendem em coxilhas, que desembocam em morros no meio do campo nativo que se estende por quilômetros. Dá para ouvir o barulho de chuva longe, muito antes de cair.

"Pela janela, há um mar verde em um horizonte de 360 graus que dão uma sensação de amplitude, de vastidão", diz a dona da Fazenda Cerro dos Porongos, no município de Alegrete. "Quando está escuro, é possível ver resquícios da Galáxia de Andrômeda, vizinha à nossa Via Láctea", diz.

Salvem o Pampa

De maneira resumida, o manejo sustentável do Pampa consiste em fortalecer a vegetação nativa para a criação de gado, como a retirada de um capim de origem africano considerado nocivo. O gado é criado livremente no campo nativo, sem o uso de estábulos, e se alimenta da vegetação sem agrotóxicos.

O número de cabeças de gado é limitado no terreno para equilibrar a divisão do espaço com árvores, bosques e especialmente com outros animais. Com isso, a biodiversidade pode ser vista, principalmente, pelo aumento dos pássaros nas propriedades onde há manejo sustentável.

Os produtores da Alianza afirmam que a receita mantém os negócios em dia e conserva a natureza. Mas é preciso correr contra o tempo.

Futuro do Pampa

Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) de 2020 concluiu que o Pampa tem apenas 33,6% da vegetação nativa. Em 2012, esse número era de 37,5%. É o bioma com menos áreas de conservação no Brasil, com apenas 0,4% de unidades protegidas por lei. Segundo os pesquisadores, a soja, a agropecuária feita sem sustentabilidade e as plantações de eucalipto recrudescem os números negativos.

Pampa é um dos biomas com menor número de áreas protegidas por lei no país e conservação depende de produtores da agropecuária - Reprodução - Reprodução
Pampa é um dos biomas com menor número de áreas protegidas por lei no país e conservação depende de produtores da agropecuária
Imagem: Reprodução

O produtor Adauto Loureiro de Souza aprendeu com o pai, Fernando Adauto Loureiro de Souza, um dos principais idealizadores da Alianza, que é preciso pensar a longo prazo.

"Ele era muito observador e se deu conta de que nosso jeito de produzir [de maneira sustentável] era bom para o meio ambiente e que deve ser valorizado", diz o filho. Hoje, Adauto é cada vez mais acionado para dar assistência para produtores interessados em sustentabilidade.

Como anda a cavalo pela região, o produtor costuma saber onde onde ficam as aves. São elas, afinal, algumas das principais beneficiadas pela conservação. Certo dia, Adaulto acompanhou um pesquisador até uma região de banhado. Lá, apontou para arbustos. Foi quando uma revoada de Veste-Amarela saiu voando pelos campos.

"O sistema de produção no Pampa é ideal para a conservação das aves. São coisas que se encaixam: a produtividade e a sustentabilidade do meio ambiente", conclui.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado, o bioma possui área de 176,5 mil quilômetros quadrados, não 178 quilômetros quadrados. A informação foi corrigida